30.9.04
arbeit macht frei. diferente do risco de vida, não havia qualquer propósito naquele trabalho. não era por isso um trabalho. o complexo era composto por sete linhas, cada uma com onze enormes serras, com discos de dentes afiados e pastilhados. a distância entre as linhas era mínima. a distância entre as serras também. os enormes discos tinham uma rotação extraordinária. quem lá trabalhava limitava-se a alimentar as serras com a madeira providenciada por via de um extenso sistema de tapetes rolantes. poderia dizer-se que o que se produzia ali, naquele complexo, era serradura. mas a tal produto, o único que resultava do labor dos homens, não era dado qualquer escoamento para o mercado. não obstante, o complexo não parava. existiam quatro turnos de seis horas cada e durante cada um desses períodos os homens limitavam-se a transmutar a madeira em serradura. mesmo quando ocorriam acidentes, o que quase sempre significava que alguém tinha sido tolhido e, parcial ou plenamente, destroçado pelos discos, o complexo continuava a operar com normalidade. se alguma máquina, por qualquer motivo, deixava de ter o seu operador, imediatamente era accionado um esquema de segurança e, de modo pronto, era colocado um outro homem no lugar vago. fazer sofrer, estropiar, matar, parecia ser o único objectivo daquele negócio. e, de facto, era. o marquês.
29.9.04
amor de pai. um pai concebeu um filho com um único propósito, que esse filho fosse supliciado e, por si - o pai -, através da lancinante dor sentida - pelo filho -, fossem redimidos os pecados, todos, do mundo. não há prova de amor paternal maior do que esta. fazer com - mais do que permitir - que um filho sofra por e para um pai e os outros. aliás, chamar a salvação do mundo ao flagelo e aos padecimentos do filho é apenas uma forma de engrandecer o gesto do pai, não o sofrimento do filho. o marquês.
28.9.04
o pai mau. deus é uma criatura incapaz de olhar os outros nos olhos. por isso, por ser cego, um dia, colérico, decidiu inventar uma gramática para os comportamentos, dividindo-os em duas categorias, as virtudes e os pecados. para os pecadores exigiu o opróbio e o castigo, a expiação da culpa e dos erros pela dor. aos virtuosos enganou-os, fingindo que a vida lhes seria fácil e prazenteira. desde o dia em que foi promulgado o decreto que distingue a virtude do pecado não mais as mulheres e os homens ousaram ser felizes. e do seu terraço sideral, mesmo sem ver, o deus cruel alimenta-se das dores, dos que sofrem. é esse o seu maná, o seu pão de cada dia, e nenhum outro. o marquês.
27.9.04
luta de classes. boa tarde, disse ele em empréstimo de simpatia ao lugar. o outro não se comoveu. levantou-se e, sem nada dizer, cravou-lhe repetidamente no peito a chave para parafusos com cabeça fendada que, antes, imediatamente antes, utilizara na reparação da canalização do loft dele. o marquês.
25.9.04
separação. no desamor, sofre, perde quem tem mais memória, disse ele. ela primiu o gatilho. estourou-lhe o arquivo, rebentou a cabeça do desgraçado. não para, por piedoso gesto, o resgatar à dor. mas por mero gozo seu. ela já o tinha esquecido. e não queria ter recordações dele. o marquês.
24.9.04
ofício de carrasco. perante o silêncio do meliante, agarrou no revólver e, inclemente, com a coronha da arma, desferiu quatro fortes pancadas, uma contra o crânio dele, três contra as costelas. supino gozo lhe proporcinou o facto, ver o corpo tombar, em agonia, e, caído no chão, a fechar-se, para protecção, na posição fetal. seguiram-se os pontapés, cada um assestado com uma impressionante fúria, como se o algoz pretendesse prolongar o êxtase que sentia para além do limite. o marquês.
23.9.04
o morto-vivo. disse que tinhas morrido. se te perguntarem, confirma, se fazes o obséquio. rogou-lhe ela. o marquês.
22.9.04
credo. sei da vida, não sei do amor, disse-lhe ele. ela, aconchegada no seu peito, recolhida no corpo dele – como se fosse um abrigo –, não quis acreditar. no momento, o coração, a paixão traiu-lhe a coragem. por isso, o sofrimento dela encontra-se na oportunidade da confirmação. provavelmente breve. o marquês.
21.9.04
o estúpido. apetece-me chamar-te estúpido. estúpido! sei que isso te magoa. estúpido! sim, tu. estúpido. disse ela. o marquês.
um desejo secreto. preenche-o, entre outros desideratos confessáveis, um desejo secreto, o de atropelar, numa madrugada, um peregrino de fátima. deseja-o não tanto por vontade de experimentar a vigilância e a disponibilidade do círio mariano que supostamente pairou sobre uma azinheira da cova de iria. mas para poder gozar a agonia da eventual vítima. o marquês.
20.9.04
roleta de tudo e do(s) amor(es). ela e ele estão apaixonados, perdidamente apaixonados, embriagados pela paixão. como antes estiveram. por outro e por outra, respectivamente. tal e qual como ditado por lavoisier para as massas. nada se perde, nada se cria. tudo se transforma. com as inexoráveis dores pelo meio. o marquês.
17.9.04
quod erat demonstrandum. prova, provada, elas não conseguem amar o rapaz-ostra. ele não deixa. facto que o reprova. e lhe custa, como é de custar, dores, imensas dores. o marquês.
16.9.04
releitura. ele voltou a ler voyage au bout de la nuit. visceral é o seu estado. os chants de maldoror não estavam a ser tónico suficiente, disse ele, justificando-se. antes de alcançar e tomar mais um cocktail de pólvora. porque lhe amarga. e lhe dói. é para doer. a dor dissipa a memória e revolta horizontes, acredita ele. enganado. o marquês.
15.9.04
destino e roteiros. à dor chega-se por vários, muitos, caminhos. da dor sai-se por uma de três vias, o suicídio ou a paixão. a outra, inominável, não interessa. o marquês.
mr. hide. ele podia ter-lhe dito não gosto que mexam no meu telemóvel. exibir-lhe a prova. porém, não estava na disposição de enfrentar o provável fingimento da inocência que, com a negação, ela encenaria. preferiu, por isso, deixá-la com a consciência tranquila, com o murmúrio do ciúme que a torturava por dentro. o marquês.
14.9.04
ressentido. que o mundo, todo, inteiro, se foda, disse ele. disse-o (res)sentido. o marquês.
testamento. começou a caligrafar, assim, em prosa epistolar, as últimas palavras que lhe iria remeter. é como se tivesses morrido, crua, fácil, quase nada ou nada. por ti não choro. por ti não dou a vida. não sacrifico a liberdade à saudade que não tenho ou ao teu engano. vai morrer longe! vai morrer feliz, se quiseres e conseguires. não quero pulgas no meu quarto. escreveu ele. o marquês.
13.9.04
dor anunciada. ela não sabe que ele sabe. irá sofrer por isso. o marquês.
11.9.04
eternal pain ting. não te amo. também não te odeio. disse ele. ela sentiu o impacto brutal das palavras. não por serem amargas. mas por, enunciada a indiferença de onde esperava o afecto, a disponibilidade, a paixão, serem o golpe que mais lhe rasga a alma, que mais lhe destroça o peito. tentou, por isso, o suicídio. falhou. e teve de sofrer acordada, viva, o desamor, o abandono, a perda. que hoje, caldeada tanta dor, não são ainda cicatriz. permanecem ferida. como se ele, jeitoso rapaz, houvesse semeado nela, bem feito!, um tormento inapagável. o marquês.
10.9.04
mesa reservada. conduziu-o ao lugar. com a palma da mão indicou-lhe a cadeira. ele sentou-se. serviu-o, como se fosse seu servo. no fim da refeição, após o café, cravou-lhe um garfo na cabeça e deixou-o expirar. ninguém viu o corpo dele a sair do estabelecimento. não há testemunhas desse facto. mas no outro dia, no cardápio, constava uma iguaria rara naquele restaurante, miolada. o marquês.
9.9.04
estranha forma de duelo. sabia que ele não gostava de sopa. foi sopa de agrião que ela fez propositadamente na ocasião em que pela primeira vez o convidou a ir jantar lá a casa. ele comeu. e repetiu. mas saiu, cedo, sem acontecerem as intimidades estimadas, depois de recusar a sobremesa e sem elogiar os dotes da cozinheira. o marquês.
8.9.04
pecado e castigo. sim, disse o rapaz, fui eu. ouvida a confissão, o sacerdote, ministro plenipotenciário, telúrico representante de deus, serviu-se de quanta ira conseguiu descobrir em si e, pelos seus actos, executou sumariamente a justiça divina. levantou-se, segurou um ceptro, contornou o confessionário e, com violência, atingiu repetidas vezes a cabeça do pecador, que, ainda prostado de joelhos, esperava o decreto da penitência. o corpo, vencido, tombou secamente sobre o soalho da capela. soou um ligeiro vagido. entretanto, o pároco olhou para as mãos. lambeu o pouco sangue que sobre elas se precipitou. sentou-se. apoiou-se no ceptro que utilizou contundentemente contra o crânio do rapaz. e, com enlevada satisfação, ficou a contemplar o corpo, trespassado pela dor, a esgotar-se no último suspiro e a fazer-se cadáver. o marquês.
7.9.04
a outra. o jogo da sedução, tantas vezes ensaiado por ambos, já fora ultrapassado. os corpos estavam enleados. os beijos eram sôfregos. ele e ela sentiam-se já tomados pela vibração que anuncia o êxtase. aturdido pela paixão do instante, ele sentiu necessidade de dizer és a mulher da minha vida, a única mulher da minha vida. ela segurou o cabelo escorrido com uma das mãos e procurou-lhe a boca. beijou-o, recompensando-lhe as palavras. depois, quebrou-lhe o selo dos lábios e alcançou-lhe a língua. prendeu-a entre os dentes. cerrou-os. e, súbito, projectando violentamente a cabeça para trás, arrancou-lhe a língua. no gesto, teve a oportunidade de ver emergir o esgar de dor que se definiu no rosto dele. não tornarás a mentir-me foi o que, após ter cuspido a língua para o chão, disse a ultrajada amante, cansada de satisfazer-se com as sobras do marido da sua irmã, aquela com quem ele, por preferência, contraíra o sagrado sacramento chamado matrimónio. o marquês.
6.9.04
a queda da dona maria antónia. ela sentou-se num banco, o do meio, um dos protegidos pela sombra. consertou-se com dificuldade. puxou as meias, esticando-as até ao limite, para segurar o frio fora de si. não estava frio, mas os muitos anos que lhe vergam o corpo já não lhe permitem o combustível vital da jovialidade. recostou-se, escorando-se sobre o braço direito, pois o banco não tinha apoio, espaldar. nessa posição disfarçou a corcunda acentuada que quase a vinca sobre si. segurou um jornal com a mão esquerda, ao nível dos olhos. e assim permaneceu, como uma estátua, a ler o jornal, até que, desamparada, caiu sobre a calçada da praça. os putos, que, próximos, jogavam à bola, riram. e não foram em socorro da velha. riram apenas. a inocência é assim. perversa e indolente. o marquês.
5.9.04
o general que não gostava de guerras.
4.9.04
maria má olha o espelho. amarrou o velho à cadeira. depois compôs a cena. colocou-o em frente ao espelho alto do armário. afinou o candeiro e a intensidade da sua luz. abriu a janela, para que o ar húmido do exterior, lavado pela chuva, entrasse no quarto. acordou-o com uma bofetada. e, então, com ele desperto, começou a mastigar-lhe demoradamente as orelhas, ao mesmo tempo que se deliciava a ouvir os gritos do velho e a ver a máscara de dor estampada no seu rosto reflectida no espelho. o marquês.
3.9.04
romeu mãozinhas. ainda hoje não se sabe do paradeiro do malandro. não lhe eram reconhecidos dotes extraordinários na cozinha. mas ninguém suspeitou que ele utilizasse o sumo dos limões, que habitualmente comprava na pequena mercearia da lúgubre aldeia, para lavar as mãos das vítimas, às quais, com investido gozo, ia cortando os dedos, sempre na sequência exacta, começando no mindinho e acabando no indicador, primeiro pela falangeta, depois pela falanginha e, por fim, pela falange. o polegar, o último dos dedos, esse, era decepado num só golpe. nunca se percebeu por que motivo, ele, às mulheres cortava primeiro os dedos da mão direita, enquanto que nos homens iniciava o suplício pelos dedos da mão esquerda. mania, apostam uns. acaso, sustentam outros. o que é sabido e consta do folclore local é que, após cada golpe, ele insistia em lavar a mão a quem, imediatamente antes, cortara uma parcela de um dedo. com sumo de limão. sabido também, conforme testemunho da única sobrevivente do flagelo, é que ele não retirava deleite do gesto breve da faca, mas da aflição e da dor de quem ia perdendo, gradualmente, os dedos das mãos. o marquês.
2.9.04
morrer de amor. no mesmo instante em que o beijou, ela cravou-lhe, fundo, um punhal. ele, esvaindo-se em sangue, rasgado pela dor dessa evasão sanguínea, sofrido, pronunciou uma única palavra. amor. mas ela, em êxtase, sorrindo para ele, o que percebeu desenhado pelo dito dos seus lábios foi traição. o que lhe revigorou o fulgor e, no breve estertor de que ele padeceu, lhe acentuou o gesto. o punhal foi ainda mais fundo. e calou-o. o marquês.
1.9.04
stylesheet. este atelier é o paralelo virtual que permite o estilo exacto e desejado das variações sobre dores, em dó menor, variações, essas, ensaiadas desde a origem neste albergue, lugar onde também estão arquivadas em memória. o marquês.
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