30.9.08
o professor Mateus Lobo. o espírito, diante de si está uma mesa com uma toalha imaculada, o que é? toca um telemóvel e ele corresponde com um olhar de censura. torna o silêncio. depois sacode a mão direita, como se a relaxasse. o pulso vibra. o espírito, os gestos são rápidos, como se fossem de um maestro a agitar a batuta, como se escoa? as perguntas obedecem a um propósito retórico, não exigem resposta, captam atenção. convocados pelas questões, os assistentes acompanham os gestos do professor, que, agora, chocalha a cabeça do homem acabado de decapitar, o corpo tombou, cabeça que o professor segura entre as palmas das mãos sobre a mesa. fios de sangue ensopam a toalha. o espírito, os assistentes aproximam-se, é isto, para observar melhor.
24.9.08
salmo bravio. o corpo latente. ela perguntou-lhe ficas de que lado do ringue? ele não respondeu. sentiu o seu jazz cardíaco e a insídia beat da estrada, a estrada aberta e longa, o pó, dínamo da alucinação. desceu para o nível subterrâneo, colocou um joelho na lâmina electrificada do metropolitano. genuflexão perfeita. recordou as vezes que segurou o copo vazio de old no. 7, rótulo negro, e todas as suas fodas fugazi. onde estou?, quis saber. problemas, problemas, disse e repetiu, problemas, problemas. problemas, gritou. acendeu um cigarro, não para acalmar, mas para pulsar a raiva com evidência. o fumo, as aleluias, a sodomização por um arlequim ou por um serafim, o princípio. isto é a nossa cosmogonia, disse ele sobre o que seria um combate apenas. mostra as tuas mãos, exigiu-lhe ela. ele fingiu não ouvir. depois fingiu não a ver aproximar-se. podiam ter sido felizes? ninguém sabe.
17.9.08
o Custódio das barricadas no quartier latin. colocou o problema do atendimento e do consolo psic. que poderia valer-lhe?, a ele, se não acreditava e não estava disposto a acreditar em modas, que químicos prescritos por um estranho pudessem afectar-lhe a alma, alterar-lhe o humor. há gajos que crêem haver deus sob a forma de comprimidos ou drageias, doseado na proporção certa. como sabes, deus é a senda para a felicidade, disse o outro, em tom trocista e provocador. o diálogo prosseguiu no âmbito da cumplicidade de ambos. e Blanchot?, era doido?, era tonto?, era o quê? leste la bête de lascaux? a conversa entre os dois amargava cada vez mais e precipitava-se para domínios umbrosos. ele sentia isso e, antes que fosse demasiado tarde, tentou rectificar o sentido do colóquio. estendeu uma garrafa de cerveja em direcção ao outro, enquanto na outra mão segurava outra garrafa para si. velhos tempos, aqueles, disse ele, arriscando recuperar o seu ânimo através da convocação de uma memória que lhes era comum. bons velhos tempos, corrigiu-o o outro, com severidade, não muita, alguma apenas, a que, justamente por não prejudicar a amizade, é permitida aos amigos. sim, bons velhos tempos, consentiu ele, derivando depois para a adversativa, mas, sabes?, não consigo sentir saudades desses tempos. este é o meu maior problema e por tal, para mim, tornou-se insuportável viver. um compasso de silêncio aproximou-os. se a fraternidade operava naquele instante, como poderia ele não sentir o triunfo daqueles dias?, se não no mundo, neles, neles dois, que estavam ali, encontrados, que antes haviam trocado um abraço e muito antes, há quarenta anos, haviam lutado e combatido juntos, corrido juntos, ousado juntos, fugido juntos. vou matar-me, proferiu ele, em tom imperturbado, ditando a sentença própria, como se fosse um meirinho, sine ira et studio, sem consciência de estar a ser condenado por si. o outro sobressaltou-se. espera, deixa-me ajudar-te, eu ajudo-te, eu primo o gatilho, e pum, camarada, menos um.
12.9.08
o Hermes do laboratório de análises clínicas. o tom da discussão aumentou quando ela disse a partícula de deus. ele deteve os passos em volta, sentiu o discernimento coar-se de si e, por respeito a Higgs, não repitas essa expressão, afirmou imperativo. ela sorriu e, qual?, provocando-o, voltou a proferir a partícula de deus. mal acabadas de dizer estas palavras, ele deu-lhe uma bofetada, para castigar-lhe a insolência. ela suportou o impacto e, em silêncio e desafio, com o rosto estendido, tornou a enfrentá-lo. consequência, o punho direito dele assentou-lhe no queixo e nos lábios, atingindo-lhe também o nariz, por o soco ter sido torcido em gancho, embora em ângulo pouco pronunciado. ouviu-se um som oco. desta vez ela perdeu o equilíbrio e demorou a recompor-se. tem cuidado, muito cuidado, comigo, porque nos meus dias piores chamo-me Deckard, disse ele, ainda irado. ela começou a chorar e recolheu um dente solto da boca. sangue abundante. facto que o parece ter compadecido. apesar de ela ter tentado esquivar-se às sua mãos, ele agarrou-a, encostou-a à parede, beijou-a e lambeu-lhe o rosto, sabes a ferro, saboreando-lhe a hemoglobina, elemento da tabela periódica com o número atómico vinte e seis.
10.9.08
no regresso do cinema. à frente pronunciava-se um segmento de estrada longo. ela dominava o automóvel, mão esquerda no volante, mão direita sobre a alavanca das mudanças. ele tentou tomar-lhe esta mão. espera, enxotou-o asperamente, tenho que meter a quinta. ele recolheu a mão, enrolando os dedos na sua palma, como se apertasse e guardasse aí o testemunho de uma culpa inesperada. perante a recusa dela, a carícia que tentara perdera-se subitamente no instante da tentativa. o automóvel continuou a cortar a noite e alguns metros adiante, agora é que já podes, ela consentiu-lhe o gesto, depois de atropelar um gato.
9.9.08
o parque. eram viagens cansativas, quando não durante a estadia, pelo menos na volta. muitas vezes o regresso cansa mais do que a ausência, é um facto. não é difícil explicar porquê. à partida e antes acontece a euforia, porque, mesmo que remotamente, a abalada significa aventura. em consonância com isso, a cabeça e o corpo dispõem-se ao desconhecido e, portanto, à descoberta. vais porque queres ir, por ti, para ti, não é? uma pessoa é uma espécie de destino volante, com origem e retorno. diz-se que a identidade é tonificada pelo sentido de exílio. de quando em quando a permanência transforma-se em tédio, tédio que, por sua vez, motiva uma esperança que se cumpre na ideia de saída. sabes como é, um gajo vai preparado para epifanias que nunca acontecem e a partir de determinado momento começa a sentir vontade de tornar aos seus circuitos, às suas monotonias. ainda que errante, um viajante leva consigo a saudade dos seus espaços e das suas cadências quotidianas, como se, porque preenchem rotinas, fossem dispositivos de protecção civil e pessoal. é uma questão de demora, porém fatal, porquanto inescapável, o despertar dessa saudade levada. fatal, reitere-se. o apelo da máquina é forte. longe, uma pessoa sente-se uma peça fora do mecanismo, tão deslocada quão sem função, pelo que mais tarde ou mais cedo deseja voltar a integrar-se na ordem que, antes, teve vontade de deixar. mas, e esta é uma nuance importante, não de deixar definitivamente. o hábito entorpece e liquida as outras hipóteses, opera como uma âncora do princípio, do que foi anterior. um gajo não está preparado para gramáticas estranhas. durante algum tempo pode contemplar a diferença, feita de paisagem e outros, mas tal diferença parecer-lhe-á sempre estranha. dentro de quem vai pulsa um sangue doméstico, feito de certezas, todas as confirmações anteriores e conquistas que, mesmo que não sentidas, são suas e inalienáveis. inscrevem-se numa sedução que penetra o corpo e instala-se aí, sem aviso, sem instância de recurso. como o transporte do tempo, o regresso é inevitável. agora, quando viajo, canso-me com mais facilidade. também tenho menos hipóteses de viajar. consequência?, asilo-me aqui e exilo-me próximo. ocasionalmente, sem ritual, pego na carabina, desloco-me até ao parque, escolho um local, ainda não repeti qualquer dos locais escolhidos, coloco-me em posição furtiva e deixo-me ficar assim. entretanto escolho um alvo, não interessa quem, uma criança a brincar no balancé ou no escorrega, um velho a jogar às cartas, um namorado sentado na relva ou num banco, um transeunte, fixo-o e disparo. um tiro apenas. depois, consoante a hora, regresso a casa ou sigo para o escritório. é menos cansativo. em cada um de nós há domiciliada uma pátria, uma comunidade que não é imaginada. é dela que promana a segurança ontológica de que necessitamos. crescemos com ela, como costume, como trato diário, e é ao seu apelo que, pelo retorno, correspondemos. não há saída. se tivesse que resumir a minha condição, diria que sou um diletante. romântico?, não, isso já não sou. há sete anos que tenho um pacemaker.
8.9.08
o Sertório da casa de ferragens. o que me incomoda no corpo de uma mulher é o calor. o outro, que antes havia dito gostar delas quentinhas, então, quando estás de volta de uma mulher, como é que fazes?, mostrou-se surpreendido com tal declaração, um gajo não as pode coisar a frio, pois não? após um silêncio breve, o tempo que demorou a aproximação para permitir baixar o tom da voz, soou a explicação, sangro-as até arrefecerem. e, sabes?, remédio santo, depois não se queixam quando um gajo se avia rápido demais.
2004/2022 - O Marquês (danado por © sérgio faria).