29.6.07
passagem. no vão de acesso ao patíbulo, havia uma placa com a inscrição «salvar-te-ás pela culpa ou não salvar-te-ás».
28.6.07
uma mão sobre Philip Larkin, i. um olhar turvo sobre o mal. ainda mais turvo sobre o amor. da janela, topada com soberania na casa, não vislumbra qualquer alma viva ou morta. o calor sopra. sente o corpo a estalar, a exigir veneno, mais veneno ou outro veneno mais forte. chega-lhe o perfume dos frutos do pomar jacente, cujas árvores, puxadas para o plano da raiz, estão vergadas pela sede. por instantes fecha os olhos, como se tentasse evacuar a alma e ficar em comunhão telúrica com os elementos que deixou de ver. como com os graves, o peso da gravidade, a sua, impõe-se sobre os ombros. ouve com mais clareza as vozes, duas sobretudo. guarda contra o corpo a mão inquieta. as mulheres não se deixam tocar, as putas, as grandes putas. está cansado de observar as mães jovens, de as contemplar e desejar quando passam. começa a lubrificar uma vontade predadora dentro de si. o seu torso exige, clama, contacto com carne estranha. surge-lhe no rosto o primeiro esgar de prenúncio de gozo. imaginação apenas. abre os olhos. ainda a mesma paisagem revelada diante de si. depois pousou high windows sobre a mesa mais próxima, deslizou os dedos, em afago, sobre a capa e saiu.
27.6.07
bad blood for everybody. o aço que entra na carne, que entra nos ossos também, não é amor, não é ódio.
16.6.07
break my body, hold my bones. uma sensação velha, porém arredada, tornou-lhe. tudo demasiado vago em torno, certo apenas o corpo. o caminho, um caminho, subitamente aberto horizonte. a frente constituída em demasia, excesso que perturba por não permitir orientação. as escalas e as legendas deixaram de operar nos termos habituais, da confiança. a distância deixou de ser compreendida. ao mesmo tempo, sentiu o espectro de si cingido à pele ou mais, porque mais do que agasalho, talvez cingido à carne, talvez até cingido aos ossos. de um arrombo, este efeito estranho instalou-se no seu corpo, colonizou-o, como se fosse anestesia. a órbita do seu ser estreitou-se, o alcance dos seus gestos apertou-se. sentiu o ar comprimido. desde este momento, partir a solidão implicava partir o corpo ou partir do corpo. foi, como foi, sozinho.
14.6.07
a biografia. o contrato cessaria após as exéquias do biografado. pelo que, enquanto ele vivesse, ela, a biógrafa, deveria acompanhá-lo em todas as circunstâncias, as públicas, as privadas e as íntimas, sem que, em qualquer momento, qualquer que fosse, ela pudesse ter intervenção sobre os acontecimentos que testemunhasse. grosso modo, era-lhe exigida atenção, apenas e só. deveria estar tão próxima quanto obrigasse a verificação dos actos, das palavras e dos diálogos do biografado. porém também deveria estar tão distante quanto obrigasse a reserva de tais actos, palavras ou diálogos. o que significa que, quanto ao mais, ela deveria guardar-se silenciosa e invísivel, para evitar qualquer interferência na vida do biografado. no início, embora inusitada, a missão pareceu-lhe interessante. tanto que dedicou-se afincadamente, estenografando tudo o que, pelos olhos e ouvidos, testemunhou, episódios edificantes ou decandentes. uma noite, imaginou-se deus. parecia uma carcaça imponente, asada, mas incapaz de alar-se. como deus, não obstante omnívoro, revelou-se cioso da sua dieta de carne. a sua imponência crescia-lhe e saia-lhe daí, não do espírito. naquela circunstância, imaginou-se deus com uma dignidade medieval, nobiliárquica, num banquete permanente, afundado entre as vianda que iam colocando sobre a mesa. ao seu lado e alcance, um cálice sempre cheio, do qual ia bebendo o melhor néctar e com o qual também embriagou as visitas, três jovens belas, com carnes soberbas e firmes, capazes de, pela exposição apenas, amotinarem o corpo de qualquer macho que as visse, mais ainda as três, se juntas. chegou inclusivamente a vigiar o sono do biografado ao longo de vários anos, para poder reportar o modo como ele dormia. não obstante a sua dedicação quanto a este parâmetro, o produto da observação resumiu-se a um parágrafo, sem fulgor, cavado num discurso incapaz de expressar devidamente o estado de repouso do contratante. por isto, por demorar a vida do biografado e por ela pretender livrar-se do contrato, numa tarde soalheira, quando ele passeava pelo parque com uma das suas amantes, decidiu matá-lo. cismou durante algum tempo sobre o modo como concretizar tal decisão. porém quase nada se sabe sobre o que aconteceu. uma mulher incerta, suspeita-se que da sua confiança, cravou-lhe cavilhas, uma em cada uma das suas mãos. depois açoitou-o. retalhou-lhe a carne em pequenos golpes, gerando refegos que, em algumas partes, permitiram denunciar músculo ou osso. drenou-lhe o sangue. temperou-lhe a carne enxuta com calda de enxofre, para a vivificar. regou-lhe as chagas e os olhos com vinagre. e, em estado de consciência permanente e sofredor, ele padeceu o suplício durante mais de quarenta e oito horas, termo após o qual expirou, como um cão não reclamado pelo dono. apesar da aturada investigação realizada pelas autoridades competentes, nunca se soube quem o martirizou e porquê.
13.6.07
epígrafe. no canto superior direito de uma página de dó menor. estâncias de mal e dor, inventário primeiro haverá a seguinte inscrição: his se stimulis dolor ipse lacessit.
11.6.07
crónica de uma vida et cætera, v. ditou-lhe a voz divina, são as cores entranhadas estranhamente no corpo, as cores de muitas noites, talvez todas as noites, não a pele, percebes? são cores de solidão, espessas como as cores de Hopper. portanto, o problema não é o sofrimento. também não é o perfume ou a textura da tua carne, não são os barulhos ou as vozes que ouço. repito, o problema não é o sofrimento, compreendo e faço gosto meu que sofras. o problema é tudo isto, o resto, eu, tu, a nossa circunstância.
9.6.07
da atenção. o tédio dissipou-se nela no momento em que, pareciam anzóis a cravar-se na carne, ele começou a explicar o que lhe havia acontecido.
6.6.07
produtividade. o director chamou a operadora do triturador de papel ao seu gabinete. primeiro golpeou-lhe os dedos das mãos, é para aprenderes!, com folhas de papel de sessenta gramas. depois desdobrou dois clips e, é para aprenderes, miquelina, que meretrício é outro ofício, espetou-lhe-os sob a unha dos polegares, um em cada.
5.6.07
Jack, o canhoto. agora salmodiava a súplica, et dimitte nobis debita nostra, pretendendo alcançar a contrição através do rogo. instantes antes observara com deleite o esgar de horror da senhora, o seu grito abafado, o charco de sangue e vísceras iluminado pelos rasgos lunares claros que alcançavam para além das frinchas da porta. instantes antes também administrou grânulos de ópio e açúcar à senhora, com o propósito de prolongar aquele estado mórbido e, através dessa garantia dilatória, continuar o seu êxtase. as esporas do desejo acicatavam-no, como se fossem uma febre indómita. aquela carne, a vibração sofrida e tensa da senhora, a concretizaçãoe e a observação do suplício, libertava-lhe a alma para além do horizonte da maior das delícias. medrava-lhe a lascívia no corpo e ele emprestava as mãos à obra, como se através de si se manifestasse o demónio. lambeu o suor, as lágrimas, o sangue, todas as secreções que a violência suscitou naquele corpo. procedeu conforme a lubricidade que o amotinou, ora com brutalidade, ora com método laborioso, para que a senhora e o sofrimento da sua carne não se esgotassem subitamente. e, ainda antes regressar à lucidez, tentou esgotar o catálogo das súplicas canónicas, ora pro nobis peccatoribus, enquanto o sémen escorria da mão com que se benzia.
2004/2022 - O Marquês (danado por © sérgio faria).