29.11.04
terapia. ser perseguido por fantasmas cansa. a ele, maduro, cansava-o mais ainda, por já não saber pastar ovinos e caprinos, arte que, sabida, herdara do seu avô e que, quando petiz, dominara superiormente. para além disso, essa arte de pouco socorro lhe seria agora, por os fantasmas que o atormentavam serem urbanos. ainda assim, decidiu e insistiu ele em reaprender a pastar ovelhas e cabras. à esposa, porém, pareceu tal decisão pouco sensata e isso mesmo, pretendendo-se prestável, lhe confessou. como retaliação, com recurso a grampos, ele prendeu as mãos dela à bancada da cozinha e, sob cada uma das unhas, com gestos furiosos, espetou-lhe agulhas. ao princípio como terapia, porque, enquanto espetava as agulhas, sentia os fantasmas que o perseguiam a dissiparem-se. depois, já livre dos obstinados fantasmas, apenas pelo gozo de a ver sofrer.
25.11.04
loucura swing. recostou-se no maple e abandonou-se ao efeito do ansiolítico. com o sono veio o sonho, no qual o marido tentava acertar-lhe na cabeça com as bolas que, em treino, ia batendo no green. por estar tomada no pesadelo, não ouviu ela o silvo do taco de titânio a precipitar-se sobre o seu crânio. anestesiada que estava, provavelmente sequer sentiu o impacto que lhe descobriu a massa encefálica. seguro, porém, é que o seu sonho nada amorteceu.
24.11.04
idées noires, i. caligrafado num pequeno caderno estava este testemunho de isidoro. não é apenas o meu pai que quero matar. quero matar também a minha mãe. a minha vida, julgo, creio, cumprir-se-á no instante em que, pelas minhas mãos, me vingar dele e dela. não é a fortuna o que busco. tão pouco o conforto de ser órfão. por revelação maravilhosa, sei apenas que matando os meus progenitores alcançarei o divino. e maior boaventura não há. hei-de matar o meu pai, pois. hei-de matar a minha mãe, pois também. porque fazer algo por um e outra, como fizeram por mim, gerando-me, é o salvo-conduto que me permitirá encontrar deus. se não no justo acto, pelo menos na consequente rendenção.
23.11.04
o (e)terno retorno. com o tempo, ele fez-se maduro. entre outras lições da vida, aprendeu que o corpo dela era um palimpsesto. o traço de cada nova dor podia assentar sobre um traço antigo, já cicatriz, escrevendo sofrimento sobre sofrimento, apagando um, velho, para revelar outro, fresco. e assim lhe foi desenhando, a ela, as costas, insistindo ele nas mesmas feridas, nas mesmas e exactas chagas.
22.11.04
em busca de uma confirmação. o que mais o obcecava, a ele, era saber que ela calçava bottega veneta. como seria cravar-lhe uma cavilha nos pés e rasgar-lhe as sandálias?, pôs-se ele a imaginar. mas fantasia da interrogação não lhe satisfazia a vontade da constatação, assim como não lhe substituía ou aplacava a necessidade da evidência. foi por isso buscar à carpintaria um martelo e um prego com doze milímetros de diâmetro. ver para crer era um dos seus lemas de vida.
12.11.04
esfolar a amada. constantino apaixonou-se por miquelina. depois amou-a. sempre com uma intensidade mórbida. ela entranhou-se nele. de tal modo que ele ficou dependente do seu perfume, do seu cheiro. um dia miquelina quis soltar-se, fazer-se livre. nunca se apaixonara por constantino. também nunca o amou como ele a amava ou de qualquer outro modo. decidiu, por isso, partir, fugir. partiu, fugiu. mas o constantino foi no seu encalce. encontrou-a. segurou-a. envolveu-a num lençol. colocou-a no carro. e, com ela cativa, regressou decidido a casa. antes de chegar, porém, parou no velho moinho de água. entrou, carregando-a sobre o ombro direito. pousou-a na laje do chão. desenvolveu-a do lençol. rasgou-lhe a blusa. e com uma faca cortou-lhe a pele das costas e do peito. depois, acto contínuo, arrancou-a, como se fosse uma folha. a única saudade que tenho é do teu cheiro, por isso levo a tua pele comigo, disse ele, enquanto ela gritava a lancinante nudez da sua carne e a corrente da água e o ranger das rodas dentadas abafavam os seus agudos uivos de dor.
11.11.04
missão dolorosa. ele aprendeu a olhar para ela com olhar de adeus, o que é dor que quase já não se usa.
9.11.04
os tempos do mesmo ofício. apontou-lhe a arma ao pé esquerdo e primiu o gatilho. repetiu o acto em relação ao pé direito e a cada uma das mãos dele. depois disse, o trabalho agora é mais limpo, em cristo os buracos foram abertos à martelada, na época ainda não tinham inventado este extraordinário berbequim chamado revólver.
8.11.04
desejado afecto. era paixão, paixão tão cega. andava ele com as entranhas incendiadas. pensava, a todo o instante, apenas nela. e dela pretendia somente uma resposta, correspondência ao seu amor. amor que ela, a velhaca, nunca lhe deu, por apreciar a dor que ele obstinadamente transpirava enquanto lhe demandava o desejado afecto.
5.11.04
queda. vou bater-te, desabafou ele, preciso de te sentir magoada para ser feliz. ao ouvir isto, ela tentou escapar, fugir. a placagem, que a fez cair, foi a primeira causa de dor que sentiu. mas a queda foi o que menos lhe doeu, a ela.
4.11.04
doer no osso. de entre todas as inutilidades humanamente inventadas, nenhuma é mais inútil do que o sofrimento indolor.
3.11.04
gritar a dor. durante as manobras de mimos, ela descobriu-lhe uma erupção cutânea sob a orelha e percebeu que o ponto lhe era doloroso. apeteceu-lhe, por isso, despertar a dor ali alojada. começou a acariciar-lhe o cabelo, como se lhe dispersasse a atenção. ao mesmo tempo olhou-o nos olhos, esboçou um sorriso, um sorriso daqueles. depois, traiçoeiramente, como quem busca gozo ainda maior, colocou um dedo sobre a borbulha, apertando-a e despertando-lhe uma dor aguda. ele enganou a dor sentida, tentando devolver a ela o sorriso. e nesse mesmo instante, segura e sádica, ela voltou a repetir o gesto e a reforçar o sentido da dor que ele sentiu, confirmando-a, sem que ele a pudesse, agora, enganar. o grito, ai!, já soara.
2.11.04
sonhos de abóbora-menina. é quase meia-noite, tenho que ir, disse ela. ele reteve-a nos seus braços. vá lá, olha que se chego a casa depois da meia-noite transformo-me em abóbora, pretendeu ela, com estas palavras, livrar-se do abraço que a estava a reter. não faz mal, sossegou-a ele. e continuou, se te transformares em abóbora, eu, depois, faço sonhos contigo e como-te. ela sorriu e comentou que romântico... não percebeu que a imagem que lhe preenchia os anseios era, mais do que a mastigar, a fritura dela em óleo alimentar.
1.11.04
primeiro de novembro. o infâme tinha um único prazer na vida, destruir as flores com que os vivos ornamentavam as campas dos seus queridos defuntos. mas o prazer não decorria da destruição das flores e respectivos arranjos. o prazer decorria da provocação, do exercício da heresia. pois sabia ele ser certo que indignando os outros lhes devolvia a traída e dorida sensação de serem vivos. para além disso, o infâme reservava-se ao prazer apenas uma vez por ano. exactamente no primeiro dia de novembro, dia em que, perante o olhar e o testemunho de quantos romareavam ao cemitério, pisava com deleite as flores depositadas sobre as lápides.
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