22.5.13
quaresmas, iii. desse domínio que guarda a voz, se ainda penso nisso?, tenta-se esquecer mas não se consegue. como as recordações persistem, a memória repete-se até o que é recordado ficar escuro, escuro que ganha espessura com o passar do tempo, tornando a escuridão superlativa. cria-se uma espécie de caixa negra, onde a realidade que se pretendeu esquecer permanece viva. disse viva, não disse arquivada, entendes? o trauma acompanha-nos permanentemente e pode assaltar-nos a qualquer momento através da presença dele. não se vê, sente-se. não se esquece, convive-se com o se quer esquecer, convive-se tão íntima, intensa e arrastadamente, como um bombardeio contínuo, que nos habituamos à dor. não a domesticamos, aceitamo-la, aceitamo-la como parte de nós, como se fosse uma parte nova que acomodamos. morremos com ela e, antes, já não conseguimos ser felizes sem ela.
15.5.13
quaresmas, ii. era tão frequentada por coisas más, fome, tanta que passei, miséria, tanta que tive, que aquilo tudo revoltou-me, como não haveria isso?, não podia ser, não fui nada e criada para viver daquela maneira, de modo que pareceu que então é que as coisas iam para diante e que não tornaria a ter que encontrar-me como me encontrei naquele tempo atrasado. revoltei-me, fui à luta com o alento e o entusiasmo todo de quem está a ver as coisas a poderem melhorar. andei por lá, noites e dias, dias inteiros naquilo, manifestações e assim, outras saídas do género, empenhada no bem que via e que vinha, a reivindicar direitos que não queriam que fossem nossos, pior, que queriam que não fossem nossos, como se o tempo de trás tivesse que durar para sempre da maneira que era. e o meu homem lá na cama, quebrado, coitado, dado ao mal que haveria de o roubar de mim, a sofrer. eu abalava e antes pedia às vizinhas que, se preciso, o acudissem, uma pinga de água, uma migalhita de pão, e elas iam. estava errada, eu ia e não devia deixá-lo ao deus dará, mas era uma força que fazia com que eu precisasse de ir e eu ia, errada, mas ia, até que ao fim e ao cabo tudo acabou. depois da liberdade larga e disparada não houve mão, veio a desorientação, a desorganização, cada um para o seu lado, como é que hei-de explicar?, vamos lá ver se eu consigo, perdeu-se aquela união, a preocupação de uns com os outros, voltámos a arrumar-nos quase ao que era antes, quase, quase, quase o mesmo, consegui explicar-me?, daí a tristeza que me anda no coração, carrego-a no peito, contristo-me por não termos sido capazes de agarrar a chance e termos deixado cair no chão o que estávamos a fazer, tanto passo para diante, tanto avante, e no fim de contas voltámos quase ao antigamente, como se não tivéssemos andado para frente, como se não tivéssemos empurrado as coisas, quase, quase o mesmo, é essa a causa da minha tristeza. fui mais feliz revoltada do que o que sou hoje. a fome e a miséria andam aí outra vez à solta e as pessoas a que calham não têm como defender-se, não conseguem defender-se. é triste, uma tristeza que dói. perder outra vez custa mais do que perder apenas uma vez, com a diferença de que da primeira vez nem sabíamos que tínhamos perdido, o que tínhamos perdido. uma tristeza, digo outra vez.
8.5.13
pas de deux, xxiv.
bebes?
uma ilusão.
com moderação. não faz mal.
faz bem?
traz a felicidade.
uma ilusão.
porém feliz.
até ao momento da ressaca, o preço cruel.
que também é uma ilusão.
como?, se o sentes na carne.
todos os preços são uma ilusão.
não sou marxista.
sei o que sou.
outra ilusão.
não acreditas?
acredito no bourbon. menos no preço certo.
garrafa de jack daniel’s numa mão, bíblia na outra.
a tolerância permite a compatibilidades de ambas.
e ainda mandas pedras.
pequenas, quando posso.
isso não é ser tolerante.
é treino. a virtude faz-se.
sorte que agora há pistolas.
bebes? (desta vez estendeu-lhe um copo.)
prefiro vodka.
lá está. a simpatia soviética. arranja-se.
esquece. confundes russa e soviética.
arranja-se mesmo.
que é mais ou menos o mesmo que confundir caviar e salada. esquece.
conheço essa inclinação burguesa, a da recusa soberba.
preferes chumbo?
quê?
a pergunta era retórica, pá.
1.5.13
pas de deux, xxiii.
ai, gosto.
mais.
não mordas. cabra.
ai.
ai.
fica.
não posso.
a quaresma já acabou, vá.
até é feriado.
hoje não.
vais ter com ela?
vou.
é sempre a mesma merda. és sempre a mesma merda.
ela é a oficial. tem direito.
e eu?, sou o quê?
a outra.
há uma revolução a acontecer lá fora.
e?
querias que não?
quero é paz e sossego.
as outras vão deixar de ser as outras.
mas não quer dizer que vão passar a ser as oficiais.
não querias que eu fosse?
não querias que eu fosse a tua?, a oficial.
ei, sister love, save my soul, como na canção.
tu e as canções. puta que pariu as canções.
fica.
hoje não.
vou ficar triste.
mais ficarias se eu ficasse.
ficava nada.
ficavas, ficavas, acredita.
não. gosto de ti.
gostas cá. usas-me e sabe-te bem usar-me.
não. nada disso.
puta. não te faças desentendida.
fica.
hoje não. já te disse.
miminhos.
foda-se. está chata.
faz.
não.
a revolução vai apanhar-te por trás. armado em macho. à antiga. vais ver.
vai-te foder.
contigo?, vou já. quero. muito.
puta. larga-me.
por trás.
como te digo.
como te aviso.
hoje não.
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