30.9.09
apólogos de Pascal, ii. votei as primeiras vezes que esse direito esteve disponível para mim. fiz parte do colégio sufragador, votei com implicação e entusiasmo. usei uma esferográfica bic cristal de tinta vermelha. não bastava fazer uma marca, senti que era necessário mais, fazer diferente, fazer a diferença. depois decidi fazer uma experiência, apurar em que medida o meu voto era relevante. constatei que nenhuma diferença fazia, nada acrescentava ou retirava ao acontecido. ou seja, o resultado eleitoral não era afectado em proporção significativa pelo meu voto ou pela minha abstenção. daí em diante comecei a esquecer-me de ir votar. e apercebi-me que uma cruz no boletim de voto, uma cruz apenas, não permitia expressar-me conforme a minha vontade. Jesus suportou uma cruz, só uma, padeceu nela, mas isso foi há muito tempo. agora os totos da santa casa da misericórdia de lisboa permitem várias cruzes e combinações. há quem diga que isso aumenta as probabilidades de acerto. creio que não é esse o problema. o problema é de expressão, de dor. uma cruz é pouco.
16.9.09
apólogos de Pascal, i. creio serem necessárias poucas palavras para nos entendermos. somos superfície e, neste sentido, compatíveis. quando dizemos sim, sim significa sim. quando dizemos não, não significa não. quando dizemos talvez, talvez significa contingência e lidamos relativamente bem com as contingências. ao contrário, as mulheres são profundas. nelas as palavras não têm necessariamente o mesmo sentido. existem no fundo delas e a comunicação é mais complexa, interessante, o que não quer dizer inteligente. nelas as palavras obedecem a um arbítrio e a uma circunstância de género. muitas vezes as palavras delas são o choque entre o que declaram e o que desejam. pouco importam as palavras, podemos dizer. ouvimos e falamos mas não é tanto o diálogo que nos detém ou concorda. elas sofrem de outro modo, são tortuosas, sofrem para fazer sofrer, sofrem para sentirem o sofrimento dos outros. neste pormenor, o da dor, as mulheres são mais inteligentes do que os homens. elas estouram de gozo quando sugerem a dor e a experimentam sugerida, porque não lhes dói. não são perversas, não se pode dizer que sejam perversas, a natureza fê-las assim. é tão só isto, elas gostam de complicar as palavras. é o que mais sofremos.
2.9.09
cardiopatias, i. o amor é uma coisa que. o estrépito de dois disparos consecutivos interrompeu-lhe a frase. contraído no chão, com as mãos encontradas com o peito, de onde escoava o calor que tinha no corpo, ele sentiu o perfume da pólvora continuado no quarto. mas quem é que te disse que o amor é uma coisa?, questionou-o ela, deixando cair uma rosa escarlate junto ao corpo jacente. duas pétalas destacaram-se da flor.
2004/2022 - O Marquês (danado por © sérgio faria).