25.3.08
a cilada. conta-se que, se quisesse, ele poderia ter-se furtado ao suplício. de facto, diante do horizonte tenebroso que o esperava, ele ponderou esquivar-se. chegou a rogar a intercedência do pai, no sentido de ser poupado ao martírio. todavia, omnipotente, o pai confirmou-lhe o sofrimento. os da nossa estirpe não se rendem, sofrem e vingam-se. no entanto, a vingança exige motivo. tu, meu filho, como entregue e condenado, és a condição necessária da vingança que planeei. por vontade minha, serás o motivo da minha vingança, embora, magnânimo, conceda que a minha ira subsequente será por ti e em teu nome, transmitiu-lhe uma voz crepitada do céu que apenas ele escutou, os outros ouviram trovões. não obstante os recursos próprios, suficientes para lhe valerem a salvação, ele acedeu ao plano paterno. consumou-se assim a justiça ditada divinamente. o filho de deus, posto em carne, padeceu e pereceu. o seu pai testemunhou a ocorrência tamborilando os dedos da mão direita, a mão justa, sobre o joelho correspondente. e, depois, confirmado o seu motivo, soprou as fúrias sobre os mortais, para ensinar-lhes a culpa. os mortais, cruéis e vingativos também, preferiram aprender a liberdade. mas deus enganou-os uma outra vez, propondo-lhes o perdão.
20.3.08
uma cura para a melancolia. o rapaz vivia a tristeza própria dos tristes, uma melancolia temporã, que se antecipara aos problemas anímicos que, quando maduro, haveria de sofrer com maior intensidade. a desdita chegara-lhe por via do apelido, dizia-se, ainda que antes do momento previsto. talvez porque de sangue acelerado, já menino ele padecia o abatimento profundo que afectava os homens da família. para afastar a consternação que lhe consumia os dias e a disposição, ele habituou-se a montar armadilhas no bosque e a esperar que qualquer peça da fauna autóctone fosse vítima. Isto era o que o fazia feliz, a sensação de domínio. porém, como a tristeza não era maleita reconhecida por lá e as autoridades da comunidade eram simpatizantes da doutrina da coexistência animal, foi-lhe movida uma perseguição correctiva, ao princípio por via administrativa, depois por via policial. durante este processo, cansado de admoestações e de cacetadas, o rapaz desistiu de ir ao bosque e de ficar a vigiar as suas armadilhas. recolheu-as. tal reparação, no entanto, não lhe atenuou a tristeza. tanto assim foi que ele continuou a sentir dentro de si o apelo do entretenimento, o que teve como consequência o aumento da sua ânsia. e já para além do limiar do desespero, não podendo capturar e torturar bichos, dedicou-se à captura e à tortura dos vizinhos, com método e preceito, para não ser detectado. recomendou-lhe a cautela que, após a administração dos suplícios, fizesse desaparecer os corpos dos afligidos. aquando os primeiros desaparecimentos observaram-se sentimentos contraditórios na comunidade. os familiares dos desaparecidos manifestaram publicamente o seu incómodo e exigiram buscas e providências às autoridades. mais do que a saudade em relação a um ente querido afastado misteriosamente do seu convívio, operava o temor e a sensação de insegurança. mas os outros, os não afectados por qualquer desaparecimento - a maioria -, revelavam alívio. o solo sagrado do cemitério estava a esgotar-se, havia apenas espaço para sepultar os próximos quatro cadáveres. descontando os desaparecidos, aumentava a probabilidade de, caso morresse, qualquer dos sobreviventes poder ser enterrado do campo de defuntos local. a preocupação só tocou os contentes do lugar no dia em que o corpo do coveiro foi encontrado retalhado brutalmente.
17.3.08
uma questão de gravidade e além. qual é o limite do amor?, não sei, mas sei o que são grainhas de maçã, declarou Eva, junto ao portão do jardim. Albert, entretido com uma lanterna, apontava-a no sentido de uma macieira, cujo tronco ostentava a palavra Isaac gravada a navalha. o limite do amor é o limite da velocidade da luz, como a desta lâmpada, apontou para a lanterna, conforme lançada num lance de dados. Eva avançou para encontrar Albert. defendes a teoria do amor como casualidade?, como produto da contingência?, interrogou-o ela enfanticamente. ele deu dois passos em torno da macieira e, sim, julgo que o amor não é um fenómeno semelhante à queda de graves, disse. Eva deteve-se por instantes. se consigo compreender-te, tal significa que o amor não depende da queda de uma das partes sobre a outra, da atracção, é isso?, tentou ela indagar pormenores sobre a asserção de Albert. para ser sincero, explicou ele, em geral o amor parece-me relativo.
13.3.08
farmácia verdade. não há deus em drageias? não há. nem em vacinas? nem em xarope anisado? não, não há. e em fluoxetina? Não. também não há deus em metilfenidato? pois não. o que é que eu posso fazer?, então. ficar quieto e rezar. e deus em ácido acetilsalicílico, que é mais fraquinho, há? não, não há. tenho mesmo que rezar, não é? é. e em água benta? não, não há deus em água benta. e amor em coca-cola, porque tem mais gás, há? não há amor em coca-cola, mas talvez haja deus, justamente por causa do gás.
11.3.08
amor sem estaca. constatando os colmilhos de esmalte refulgente que lhe sulcavam os lábios, ele encarou-a com espanto. sorvo sem atender ao cálice, prosseguiu ela, mostrando a língua agitada e inclinando ligeiramente a cabeça. o que, antes de a sua silhueta precipitar-se tenebrosa e vertiginosamente, petrificou o pavor nas feições níveas dele.
10.3.08
lovestain. coisa sinistra, o amor. o outro acenou com a cabeça a sua concordância. os dois conduziram o olhar no sentido sugerido pela dispersão do sangue. por acaso já leste um livro cujo título é liebe als passion. zur codierung von intimität?, indagou o outro. concentraram o olhar numa mancha de sangue que se estendia para o domínio da umbria. apenas uma coisa é mais sinistra do que o amor, correspondeu ele, ao mesmo tempo que flectiu os joelhos, para baixar-se, ter uma perspectiva do chão que permitisse penetrar a sombra, a sociologia, e acompanhar o prolongamento da mancha.
7.3.08
uma outra tragédia clássica. coração vassalo?, não tenho, disse ela. tentar-te-ei, no entanto, entusiasmou-se ele, porque habituado a participar em rodeos e a cair.
6.3.08
amor Wittgenstein. vou dizer-te um poema de Stephen Crane, ouve. in the desert
i saw a creature, naked, bestial,
who, squatting upon the ground,
held his heart in his hands,
and ate of it.
i said: “is it good, friend?”
“it is bitter - bitter”, he answered;
“but i like it
because it is bitter,
and because it is my heart”. acreditas?, acreditarias se o coração fosse o teu e o mordesses.
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