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atelier de domesticação de demónios

caderno de variações sobre dores em dó menor, por O Marquês. 

25.7.07


se só deus existisse. começou por ser uma acusação, estás satisfeito?, embora não como as outras, tantas, que lhe foram dirigidas antes. não, respondeu ele. encontrou a mão áspera com o ombro despido, que estava a ser soturado. porquê?, perguntou-lhe a enfermeira, ao mesmo tempo que lhe laçava a carne. ele observou o fio a correr entre si, a ser apertado, para aproximar os flancos da ferida. quero ser escritor. começou a lavoura para o terceiro ponto, escritor?, que tipo de escritor?, poeta?, os dedos ampararam a carne, a outra mão empurrou a agulha. escritor de chão, de chão não varrido, soalho antigo, cuspido, com cascas de tremoço e cerveja entornada. a enfermeira permaneceu atenta à ferida, distanciou a cabeça à procura de outra perspectiva. e escritor de chão porquê?, ela apresentou assim a sua curiosidade. após um compasso de silêncio ele continuou a resposta, para escrever cartas de amor. o chão tem o corte perfeito para isso. acresce que as cartas de amor devem ser escritas sobre chão encardido, para destacarem-se. a enfermeira passou sobre a sotura um rolo de gaze várias vezes, até perfazer o penso. mas, para valerem, as confissões devem ser escritas em papel limpo. ele concertou a camisa e começou a abotoá-la. firmarei como subscritor as cartas de amor que hei-de escrever sobre o chão, não escreverei confissões. sou animal de carne solta, não me confesso. eu estupro, eu magoo, eu mato, não me confesso.

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23.7.07


and thus began my morbid fascination. olhavam tristes pela janela. já não há viagens de comboio longas, disse ele. é por isso que vais ficar aqui sozinho e sem horizonte, disse ela.

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12.7.07


no terraço Villiers. ao princípio sentiu nas mãos um ardor pequeno, quase nada. ignorou esse facto, o sintoma não a demoveu. vestiu um casaco, para acautelar-se em relação à temperatura. ouvira num noticiário da rádio durante a manhã uma referência a acentuado arrefecimento nocturno e, por ser mulher de sangue quente, não estava para confrontar-se com o frio eventual. assim vestida, saiu em direcção à esplanada. chegou, sentou-se, pediu um café, fumou um cigarro. sentiam-se os prenúncios outonais. o vento mais levantado, não brisa apenas. o céu mais nublado, no entanto cortado por uma claridade da lua, incomum para aquelas noites. ela era a única cliente na esplanada. depois de beber o café fumou outro cigarro. nesse momento já sentia o corpo mais quente. o sangue começou a parecer-lhe uma torrente de lava. porém não transpirava e a sua pele não ruborescera. sentia a face e as mãos febris, mas não inchadas. ao mesmo tempo, a visão começou a parecer-lhe em fast foward, não obstante tivesse uma definição superior ao costume. conseguia ver coisas, pormenores, detalhes, que antes nunca percebera. todos os seus sentidos estavam sob tumulto, como se estivessem afinados extraordinariamente e em exercício de sondagem permanente. sentiu distorções ligeiras no olhar, que atribuiu a uma aceleração das sinapses. para além da estranheza do estado em que se sentia, ela não suspeitava o que estava a acontecer-lhe. foi por essa altura que um homem com o torso nu sentou-se numa mesa ao lado da sua e saudou-a, sorrindo e dizendo boa noite. não conseguiu retribuir o cumprimento, algo a silenciava. atordoada por zunidos, o mais que conseguiu foi ouvi-lo pedir um café à empregada. entretanto a temperatura aumentou dentro de si. sentiu dissipar-se a capacidade de controlo dos seus actos e ser conduzida a uma situação de vertigem indescritível. pouco depois, como transmutada em fera, lançou-se sobre o abdómen do homem que esperava o café e devorou-o. devorou-o literamente, auxiliada pelas mãos que operavam simultaneamente como gumes e grampos, golpeando e abrindo a carne, para que pudesse ser mastigada mais facilmente. a cena demorou minutos breves, não mais de seis, sete. e, entre as poucas, nenhuma testemunha verificou nela qualquer propriedade estranha, garras em vez de mãos, incisivos de carniceiro, pelagem bravia ou orelhas afiladas. era uma mulher apenas. uma mulher como as outras.

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11.7.07


hipertrofia. olhou para ela e disse-lhe, sabes?, muito amor é amor demais.

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4.7.07


o fim de Maricelo Montes, o murcho. a vida custava-lhe. a vida custa a todos, mas parece que, por contrariedades muitas, a dele custava mais ainda, como se sobre ela incidisse uma taxa suplementar de desgraça e dor. a família, pais e irmã, morrera num acidente automóvel. a quantidade de desamores e humilhações por que passara era maior do que o elenco das estrelas. os negócios em que se envolvia tendiam a resvalar de mau para pior, facto que teve como consequência um acumulado de falências. para além disto, há muito que o património da casa, parco, havia sido liquidado. poupanças não tinha. era gago, disléxico, míope e canhoto. tinha um hálito bafo-de-onça. e mesmo assistido, era-lhe difícil conseguir uma erecção e, se a conseguia, ejaculava em instante com duração inferior ao tempo de ignição de um fósforo. como se este rol de misérias não fosse suficiente, o excesso de peso impedira a sua admissão no curso de saltos com paraquedas que desejava. os braços curtos e os dedos grossos não lhe permitiam manipular com destreza armas com o calibre necessário. tinha aversão a gumes e o sangue impressionava-o deveras. desde pequeno não simpatizava com martelos. o cheiro da gasolina ou do diluente provocava-lhe náuseas. saltar de um edifício alto estava fora de questão, porque padecia de vertigens e era mais perigoso do que saltar com paraquedas. deglutir drageias até à overdose ia contra os seus credos moral e religioso. a solução que preferiu foi, por isso, óbvia. pegou um berbequim, ligou a respectiva ficha à tomada de electricidade, embuchou-o com uma broca de doze milímetros com cabeça de diamante, encostou-a à tempora direita e, como se fosse um gatilho, primiu o botão. a broca afundou-se sem dificuldade. o caso, porém, não terminou com o acto referido. é que, registe-se, no momento do eclipse ele não sentiu desfilar a habitual sequência de fotogramas que sumula a vida. até ao passamento, até ao derradeiro sopro de vida, o seu espírito esteve ocupado integralmente com uma interrogação de motivo aviltante, o pénis do Wolverine é de adamantium?

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3.7.07


uma mão sobre Philip Larkin, ii. porque a mãe tardava aparecer, a criança começou a chorar. o problema não era o atraso apenas. na véspera a mãe havia-lhe prometido um sorvete, o que era raro a criança comer. merecia-o em função do resultado extraordinário que conseguira num exercício escolar. porque vigiava-lhe a dieta com rigor, a mãe estaria a demorar-se para esquivar-se a dar-lhe o sorvete prometido?, perguntava a criança a si e torturava-se com isso. a tua mãe já vem, não chores mais, ela deve ter-se atrasado por causa do trânsito, tentaram sossegá-la. estas palavras disfarçavam mal o incómodo sentido na escola. a mãe, aquela mãe em particular, nunca chegara atrasada antes. era exemplar também por isso. muitas invejavam-a. invejavam-lhe a beleza. invejavam-lhe o estilo e a roupa e os acessórios. invejavam-lhe o perfume discreto e a cor da pele. invejavam-lhe o estatuto e a serenidade. invejavam-lhe a aura. invejavam-lhe o marido. invejavam-lhe as prestações escolares do filho. quase ninguém lhe desejava bem, mas ela também não necessitava. era reconhecida profissionalmente e auferia em conformidade. bem casada e, ainda por cima, ganha uma fortuna, diziam as invejosas. na escola, decidiram contactar telefonicamente o pai da criança. tentaram, mas ele não atendeu. entretanto a criança tornara-se mais irritante. não parava de chorar e soluçar. já ninguém queria saber da mãe ou da sorte da criança, queriam que o pequeno fosse levado apenas, que tornasse o sossego. a mim ninguém paga para ser mãe de quem não é meu filho, desabafou uma. ouvir o choro tornou-se aflitivo. sentes falta da mamã?, sentes?, tentaram confortar outra vez o miúdo, não mais para tranquilidade dele do que para alívio de quem escutava o seu choro. não!, não quero a minha mãe, quero um gelado, o gelado que ela me prometeu ontem. o pai continuava sem atender o telefone. transpirado e em convulsões, segurava a cabeça da sua assistente, enquanto ela lhe prestava um favor extraprofissional. agora não estou para ninguém... continua a trabalhar, que estás a trabalhar bem. ao mesmo tempo mãe, essa, descobriu-se a despertar num lugar estranho e maniatada. diante de si estava uma maçã. trinca-a!, ouviu ela uma voz ordenar-lhe, sem perceber de quem.

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2.7.07


rumo. um, dois, três passos atrás, para, mais por instinto do que por vontade, destacar-se do rebanho e regressar à alcateia.

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2004/2022 - O Marquês (danado por © sérgio faria).