3.7.07
uma mão sobre Philip Larkin, ii. porque a mãe tardava aparecer, a criança começou a chorar. o problema não era o atraso apenas. na véspera a mãe havia-lhe prometido um sorvete, o que era raro a criança comer. merecia-o em função do resultado extraordinário que conseguira num exercício escolar. porque vigiava-lhe a dieta com rigor, a mãe estaria a demorar-se para esquivar-se a dar-lhe o sorvete prometido?, perguntava a criança a si e torturava-se com isso. a tua mãe já vem, não chores mais, ela deve ter-se atrasado por causa do trânsito, tentaram sossegá-la. estas palavras disfarçavam mal o incómodo sentido na escola. a mãe, aquela mãe em particular, nunca chegara atrasada antes. era exemplar também por isso. muitas invejavam-a. invejavam-lhe a beleza. invejavam-lhe o estilo e a roupa e os acessórios. invejavam-lhe o perfume discreto e a cor da pele. invejavam-lhe o estatuto e a serenidade. invejavam-lhe a aura. invejavam-lhe o marido. invejavam-lhe as prestações escolares do filho. quase ninguém lhe desejava bem, mas ela também não necessitava. era reconhecida profissionalmente e auferia em conformidade. bem casada e, ainda por cima, ganha uma fortuna, diziam as invejosas. na escola, decidiram contactar telefonicamente o pai da criança. tentaram, mas ele não atendeu. entretanto a criança tornara-se mais irritante. não parava de chorar e soluçar. já ninguém queria saber da mãe ou da sorte da criança, queriam que o pequeno fosse levado apenas, que tornasse o sossego. a mim ninguém paga para ser mãe de quem não é meu filho, desabafou uma. ouvir o choro tornou-se aflitivo. sentes falta da mamã?, sentes?, tentaram confortar outra vez o miúdo, não mais para tranquilidade dele do que para alívio de quem escutava o seu choro. não!, não quero a minha mãe, quero um gelado, o gelado que ela me prometeu ontem. o pai continuava sem atender o telefone. transpirado e em convulsões, segurava a cabeça da sua assistente, enquanto ela lhe prestava um favor extraprofissional. agora não estou para ninguém... continua a trabalhar, que estás a trabalhar bem. ao mesmo tempo mãe, essa, descobriu-se a despertar num lugar estranho e maniatada. diante de si estava uma maçã. trinca-a!, ouviu ela uma voz ordenar-lhe, sem perceber de quem.
2004/2022 - O Marquês (danado por © sérgio faria).