25.7.07
se só deus existisse. começou por ser uma acusação, estás satisfeito?, embora não como as outras, tantas, que lhe foram dirigidas antes. não, respondeu ele. encontrou a mão áspera com o ombro despido, que estava a ser soturado. porquê?, perguntou-lhe a enfermeira, ao mesmo tempo que lhe laçava a carne. ele observou o fio a correr entre si, a ser apertado, para aproximar os flancos da ferida. quero ser escritor. começou a lavoura para o terceiro ponto, escritor?, que tipo de escritor?, poeta?, os dedos ampararam a carne, a outra mão empurrou a agulha. escritor de chão, de chão não varrido, soalho antigo, cuspido, com cascas de tremoço e cerveja entornada. a enfermeira permaneceu atenta à ferida, distanciou a cabeça à procura de outra perspectiva. e escritor de chão porquê?, ela apresentou assim a sua curiosidade. após um compasso de silêncio ele continuou a resposta, para escrever cartas de amor. o chão tem o corte perfeito para isso. acresce que as cartas de amor devem ser escritas sobre chão encardido, para destacarem-se. a enfermeira passou sobre a sotura um rolo de gaze várias vezes, até perfazer o penso. mas, para valerem, as confissões devem ser escritas em papel limpo. ele concertou a camisa e começou a abotoá-la. firmarei como subscritor as cartas de amor que hei-de escrever sobre o chão, não escreverei confissões. sou animal de carne solta, não me confesso. eu estupro, eu magoo, eu mato, não me confesso.
2004/2022 - O Marquês (danado por © sérgio faria).