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atelier de domesticação de demónios

caderno de variações sobre dores em dó menor, por O Marquês. 

30.10.04


modo manso de ser sádico. se podes sofrer comigo, por que é que hás-de sofrer com outro? o marquês.

referência

29.10.04


preparação para o espectáculo. colher mandrágoras sob o próprio cadafalso e mastigá-las. algo acontecerá quando a corda esticar. o marquês.

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27.10.04


o desgraçado. durante o jantar, em que se riram de si-mesmos, os quatro conviveram com a própria miséria. um outro chegou depois, de todos provavelmente o mais desgraçado, e não foi capaz de rir-se de si, tão pouco suportou que os outros se rissem dele. ressentido, decidiu ausentar-se do jantar, antes da sobremesa, como modo de os fazer sofrer. mas eles ainda se riram mais. porque lhes apetecia rir. e também porque lhes apetecia magoar, com os risos histriónicos, o outro, de todos provavelmente o mais desgraçado. o marquês.

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26.10.04


sangrar. se o seu princípio é doença e não dor, há sangue cuja origem não interessa, nem muito, nem pouco, saber. o marquês.

referência

25.10.04


o eco que vem de dentro. para além da verdade, o que é que te impede de cantar she loves me, ié, ié, ié?, perguntava-lhe a tortuosa consciência, antes de ele começar a auto-flagelar-se. o marquês.

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23.10.04


o suplicante. por que é que te faço sofrer?, porque não sinto a culpa. sinto, sim, o prazer da culpa de te fazer sofrer. sinto esse prazer porque te sei sofredor e sofrido às minhas mãos. sinto esse prazer porque suplicas. é isso que me tonifica o gozo. o marquês.

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22.10.04


o batismo. baixou-lhe a água sobre a cabeça e enunciou as seguintes palavras lasciate ogne speranza, voi ch’intrate. o marquês.

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21.10.04


caminhos. não vás a madrid por causa do carro. não vás a madrid por causa da chuva. não vás a madrid por que a tua vontade é outra. mas não fiques em lisboa por causa de uma mulher. é um conselho. mau. mas é um conselho. o único que te protege da dor. o marquês.

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20.10.04


o prazer da mentira. mentir era um prazer para ela. por isso mentia-lhe, a ele. que o amava. que era o homem, o único, da sua vida. que era feliz com ele. que seria eternamente feliz com ele. que tudo. ele acreditou nas mentiras dela. do mesmo modo que ela sentia prazer em mentir-lhe, ele sentia prazer em acreditar nas mentiras dela. sofreu ele, depois, por isso. e ela, com a dor dele, satisfez-se ainda mais. o marquês.

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19.10.04


dar uma mão. porque a dor destila o que melhor há nas pessoas, é dever, quase imperativo cívico, ajudar os outros a sofrer, disse o orador à audiência. ao escutar isto, de entre a vasta audiência ergueu-se uma mulher. dirigiu-se, caminhou até ao púlpito, interrompendo a conferência. na sala emergiu um burburinho. ao aproximar-se do orador, a mulher desembaiou uma adaga e, acto contínuo, num último passo de aproximação, cortou-lhe a mão direita. o conferencista não fingiu a dor, o sofrimento que subitamente o tomou. gritou, ao mesmo tempo que se agitou convulsivamente, numa tentativa de estancar o sangue infrene e, em simultâneo desespero, apanhar do chão a mão decepada. como o orador tardava em agradecer o gesto altruísta da mulher, os responsáveis pela conferência decidiram confortar a audiência com um fundo sonoro preenchido pela canção with a little help from my friends. o marquês.

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18.10.04


ir à escola. afiou o lápis. retornou ao lugar. antes de se sentar, cravou-o na cabeça do colega com quem partilhava a mesa. a cabeça tombou abruptamente sobre o tampo. ele observou demoradamente o efeito do seu acto. era uma descoberta. e gostou. gostou do primeiro dia de aulas, do seu primeiro dia de escola. o marquês.

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16.10.04


mãe flor. a menina lurdes tratava delicadamente as flores. eram não só uma importante fonte de renda para si, eram também a sua família, descendentes de lurdes flores, solteirona e namoradeira. sabedor disso, o ti abílio alfaiate, danado de ciúmes por a menina lurdes andar embeiçada pelo tomé, aproveitou-se de uma ausência dela e destruiu-lhe todo o jardim e alfobres anexos. nunca nada tanto tinha doído à menina lurdes. quando se apercebeu dos estragos, a desgraçada velha tombou. durante semanas ninguém foi capaz de lhe aplacar as dores, vertidas em infinitos fios de lágrimas. sentia-se uma mãe a quem a morte levara todas as filhas. enquanto isso, o ti abílio alfaiate ria. e semeava o boato que o autor de tamanha malvadeza havia sido o tomé. por qual motivo a dor havia de atingir apenas um?, se podia atingir dois, pensava, de modo atinado, ele, o malvado ti abílio. o marquês.

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15.10.04


cumprir a imaginação. tecla on. aumentou o volume. uma vaga de som grosso precipitou-se. um estrépito chocou com as paredes, fazendo-as vibrar. tornava o suplício. à vizinha apeteceu-lhe ser violenta. fazer sofrê-lo. imaginou-o apavorado, a chorar. depois a gritar, guinchar, a pedir ajuda. a voz, porém, era abafada pela música. ninguém iria escutar e, por isso, acudi-lo. ele iria agonizar demoradamente, antes de morrer. a vizinha decidiu-se. procurou o gancho entre os utensílios da lareira. agarrou-o. abriu a porta de casa. e foi pedir ao vizinho, ao jovem, que baixasse o volume do som. o marquês.

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14.10.04


o ópio e depois. o ópio inundou-o. por extensos instantes foi um prazer. a indolência nos gestos. o olhar vago e cheio. a presença de tudo, tudo tão próximo. a dinâmica acelerada e por vezes distorcidas das coisas. depois aconteceu o primeiro embate. o corpo retraiu-se. a dor estava anunciada. ia acontecer-lhe. a ressaca nunca falha. o marquês.

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13.10.04


campanha alegre. naquele ofício não havia facilidades. tudo custava. ainda assim, os homens pareciam felizes. entregavam-se às missões com decidido entusiasmo e nunca reclamavam das condições de trabalho, do horário ou da remuneração. um dia, porém, tudo mudou. num dos homens as costas rasgaram-se e, pelas escápulas, cresceram asas. as asas eram revestidas por uma plumagem clara. nasceu nessa data a vaidade, porque o homem asado, a quem passaram a chamar o anjo, entendia que o serviço lhe deslustrava as penas e, por isso, recusou-se a trabalhar entre a fuligem. aos outros, nesse exacto instante, fugiu a felicidade, mesmo que fosse uma felicidade fingida. tornou ela apenas depois de o dito anjo ter sido encontrado morto, com as asas arrancadas. os outros, para aplacarem a estranha sensação de miséria que lhes havia assomado, decidiram assassinar o desgraçado. e com requinte o fizeram, utilizando grandes alicates no feito. ninguém pode tolerar que um qualquer infeliz, por sortilégio da natureza, a quem lhe foram proporcionadas asas, possa destruir a alegria no trabalho. por isso, mas também por que lhes agradou participar no martírio do anjo, mataram-no. o marquês.

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12.10.04


serviço de táxi. chamou um táxi. ela queria partir imediatamente. a outra, tomada pelo ciúme, para impedir a sua partida, desenhou um círculo no chão do hall de entrada da casa e colocou lá, destruído, um relógio, pretendendo simbolizar a paragem do tempo. como ela insistia que, não obstante a destruição do relógio, o tempo continuava a fluir, a outra assestou-lhe repetidas vezes com um martelo nas mãos e nas pernas. terminou ali, derradeiramente, a urgência dela. entretanto, já tarde, chegou o táxi. o marquês.

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11.10.04


sangrar. o único sangue que interessa deter nas mãos é o sangue da eterna aliança, o sangue que tem impregnado o odor da dor. nenhum outro. pois qualquer outro é sangue doce ou demasiado destilado, amargo. o marquês.

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9.10.04


o viúvo. ela ameaçou, pediria o divórcio e a tutela das crianças se ele continuasse a frequentar o prostíbulo. ele, por prazer, preferiu ficar viúvo. e ficou. das crónicas sabe-se que a morte que lhe aconteceu, a ela, foi macabra e dolorosa. e ele continua, como antes, a frequentar o prostíbulo. um homem não tem a culpa de ser homem. antes, deve poder gozar esse facto, ser homem. o marquês.

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8.10.04


requiem. o maestro atravessava um período de penúria e isso notava-se tanto na sua roupagem quanto no seu asseio. o inverno havia sido pouco rigoroso, poucos pereceram. a primavera já chegara e o tempo cálido fazia os corpos menos propensos a tornarem à terra. desde setembro até abril aconteceram na cidade apenas dois funerais. por isso, o rendimento pelos serviços prestados baixara drasticamente. tomou, então, o maestro a decisão de estimular a procura dos seus serviços. e, num misto de necessidade e de prazer, começou a estrangular as jovens das melhores famílias, utilizando em tal empreitada cordas de violino. o marquês.

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7.10.04


a civilização da cidade, ii. um qualquer dia, não é possível precisar qual, a parte da multidão dos pés lavados percebeu fortuitamente que o sangue também permitia desencardir os pés. passaram, então, a sangrar as vítimas que antes apenas obrigavam a chorar. retalhavam-lhes os corpos e deixavam escorrer o sangue para as tinas onde, depois, iam lavar os seus pés. o marquês.

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6.10.04


a civilização da cidade, i. era uma cidade da multidão. a multidão tinha os pés sujos, era essa a sua identidade. não havia aparências naquela cidade, todos tinham os pés sujos. a multidão vivia comprimida num espaço estreito, de edifícios degradados. devido à morfologia da cidade, aí não existiam segredos. também não existia solidão. tudo acontecia aos olhos de outros, testemunhas do que acontecia e da vida. um dia, porém, sem que se tenha logrado descortinar porquê, um dos da multidão decidiu lavar os pés. lavou-os com as suas próprias lágrimas e reclamou-se o limpo. uns quantos ficaram impressionados com o acto e, imitando-o, decidiram lavar também os pés. os outros, por apatia ou determinação, não verteram lágrimas e continuaram com os pés encardidos. como consequência, a multidão dividiu-se. continuou a existir a multidão dos pés sujos e, a par, surgiu a seita dos pés lavados. apesar das diferenças e das recíprocas recriminações, a convivência entre uns e outros foi sendo pacífica e tolerada. até ao dia em que, cansados de lavar os pés com as próprias lágrimas, os dos pés limpos obrigaram alguns dos com pés encardido a chorarem sobre os seus pés. capturaram-nos, açoitaram-nos violentamente, sem aviso, e vergaram-lhes a face até aos pés dos que os vergastavam, por forma a aproveitar todo o líquido lacrimal derramado. ao princípio a lavagem dos pés foi o motivo porque supliciavam os outros. depois, no entanto, o motivo passou a ser outro, o gozo que lhes assomava por supliciarem os outros. ainda hoje é esse gozo que assegura a existência daqueles com os pés lavados. o marquês.

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4.10.04


filho do pai. quero aprender a magoar, ensinas-me?, rogou o filho ao pai. respondeu o pai que não. porquê?, quis saber o filho. porque irias fazer-me sofrer, explicou o pai. estou a perceber a lição, disse o filho. em seguida segurou uma podoa, com ela cortou a mão direita do pai e meteu-lha na boca. é assim que se magoa, não é?, pai, perguntou o filho, evidentemente curioso. o pai, encharcado em dor, nada conseguiu dizer. também não pareceu orgulhoso da sua paternal pedagogia. o marquês.

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2.10.04


nojo. a mulher deixou de ser capaz de suportar a intimidade com o marido. a mera presença dele agoniava-a. experimentou sová-lo. como nada se alterou, insistiu no exercício, sovando repetidas e mais vezes o homem. a partir de determinado momento, porém, a mulher já não acreditava que, por via das sovas, fosse possível inocular o nojo que sentia. continuava a agredir o marido apenas porque isso lhe fornecia um incomensurável gozo. o marquês.

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1.10.04


o jogo de xadrez. porque a condição lhe permitia, decidiu criar um jogo de xadrez em que as peças seriam gente, gente viva, de carne. e cada vez que uma peça avançasse sobre outra haveria de ser derramado o sangue e provada a morte destoutra no tabuleiro. pois, cismou ele na lucidez do seu juízo, com a evidência da dor o jogo tornar-se-ia mais autêntico para os espectadores. o marquês.

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2004/2022 - O Marquês (danado por © sérgio faria).