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atelier de domesticação de demónios

caderno de variações sobre dores em dó menor, por O Marquês. 

6.10.04


a civilização da cidade, i. era uma cidade da multidão. a multidão tinha os pés sujos, era essa a sua identidade. não havia aparências naquela cidade, todos tinham os pés sujos. a multidão vivia comprimida num espaço estreito, de edifícios degradados. devido à morfologia da cidade, aí não existiam segredos. também não existia solidão. tudo acontecia aos olhos de outros, testemunhas do que acontecia e da vida. um dia, porém, sem que se tenha logrado descortinar porquê, um dos da multidão decidiu lavar os pés. lavou-os com as suas próprias lágrimas e reclamou-se o limpo. uns quantos ficaram impressionados com o acto e, imitando-o, decidiram lavar também os pés. os outros, por apatia ou determinação, não verteram lágrimas e continuaram com os pés encardidos. como consequência, a multidão dividiu-se. continuou a existir a multidão dos pés sujos e, a par, surgiu a seita dos pés lavados. apesar das diferenças e das recíprocas recriminações, a convivência entre uns e outros foi sendo pacífica e tolerada. até ao dia em que, cansados de lavar os pés com as próprias lágrimas, os dos pés limpos obrigaram alguns dos com pés encardido a chorarem sobre os seus pés. capturaram-nos, açoitaram-nos violentamente, sem aviso, e vergaram-lhes a face até aos pés dos que os vergastavam, por forma a aproveitar todo o líquido lacrimal derramado. ao princípio a lavagem dos pés foi o motivo porque supliciavam os outros. depois, no entanto, o motivo passou a ser outro, o gozo que lhes assomava por supliciarem os outros. ainda hoje é esse gozo que assegura a existência daqueles com os pés lavados. o marquês.


2004/2022 - O Marquês (danado por © sérgio faria).