27.2.13
matar por amor, iii. dizem que quando se sai de um lugar como aquele, que nos comeu tantos anos, que nos roeu e mastigou demoradamente a alma, costuma lançar-se um olhar para trás, para fazer um balanço e uma promessa de não retorno ali. é mentira. falo por mim, é mentira. saí e não senti necessidade de rever o que já tinha gravado em mim. ainda hoje sinto que os meus olhos têm tatuado dentro a imagem daquelas paredes, dos muros, das grades. sinto que tudo isto permanece imprimido na retina dos meus olhos. é com eles que me mostro e vivo permanentemente a minha culpa. por vezes, isto custa, ó se custa, custa como o caraças, julgo que estou amaldiçoado. mas pouco depois percebo que não. compreendo-me. estás a perceber?, compreendo-me. quando saí não olhei para trás porque não senti necessidade de lavar a culpa. talvez os outros tenham precisão disso, eu não, não tive. tenho noção perfeita do que fiz. fosse hoje, volvido todo este tempo, voltaria a fazer o mesmo. não me arrependo, não me arrependo do que fiz.
20.2.13
matar por amor, ii. um estrondo súbito interrompeu ainda mais a noite e aumentou o alvoroço que vivia dentro de Clementina. um tiro, pareceu um tiro. no quarto contíguo a irmã de Clementina acordou também. a besta multiplicada bateu em fugida, chocando brutamente com a casa, fazendo vibrar as paredes, as portas, as janelas, o vigamento do telhado, o soalho. talvez tenha sido o Baltazar, murmurou a irmã, devem ter ido outra vez às dele. Baltazar é sargento da guarda nacional republicana, aquartelado na vila, e habita ali desde quando casou com a Alice do Brás das botas, sapateiro já morto, proprietário das terras e casa que ela herdou. Baltazar e Alice criam rezes para vender no mercado e têm duas vacas leiteiras para gasto próprio. que queres dizer com isso?, parecia o demónio lá fora. o demónio, fosse o que fosse, ia já longe, indiciava o abafamento crescente da cadência do trote da besta produzido pela distância. qual demónio?, qual quê?, aquilo era mas é o gado bravio do doutor, que anda para aí às soltas e às vezes, à noite, baixa aqui ao lugar. estragam tudo, é uma desgraça. há uns meses até se afoitaram a ir ao curral do Baltazar, ele estava de serviço, e cobriram umas vitelas que ele tinha lá na engorda. foi um prejuízo doido. teve que abatê-las e ainda teve que pagar para as queimarem. e a Alice, coitada, não ganhou para o susto. de visita à irmã, Clementina, já levantada e à porta do quarto, e que é lá isso do gado do doutor andar à solta?, nada sabia destas novidades.
13.2.13
matar por amor, i. o torpor morno da noite envolve as giestas, as pedras. a serra é áspera. Clementina, setenta e sete anos caídos no corpo, nos ossos e na carne, já doem, dos quais quarenta e dois, nunca houve outro, como viúva, ouve ruídos. o sono interrompido. o que é isto?, interroga-se em ideia. lembra-se que, ao fim da tarde, viu a porta do cemitério aberta e suspeita que assim deve ter ficado. almas à solta, coisa do fim do mundo, será?, ainda o pensamento a desfiar hipóteses que permitam explicar o barulho lá fora. ela benze-se, convoca as orações para a acompanharem na solidão e no temor. guarda o corpo tenso, dobra-o na posição fetal, deitada sobre o ombro mais afastado do coração. o demónio parece rondar a casa. o som de cascos batidos nas lajes prenunciam a presença da besta. besta plural, uma só mas como se fosse muitas, montada em patas multiplicadas. o som tocado na pedra é simultaneamente seco e curto, pesado. às vezes surge-lhe a respiração. o bafo daquilo parece estar no quarto, mas ela percebe que não está. o raciocínio corre em tropel, sem sela, apenas com o susto. a casa está cercada, quem anda aí?, por uma espécie de diabo.
6.2.13
2004/2022 - O Marquês (danado por © sérgio faria).