29.2.12
Ηλέκτρα sozinha
i. ele, vamos matar o pai, sugeriu. ela, não, contrapôs, vamos matar a mãe. ele, e, tentando recuperar o sentido e o domínio do projecto, se matássemos o pai e a mãe? ela, melhor, impôs o método e a sequência, matamos a mãe com o pai, ele mata-a, depois matamos o pai.
ii. e assim foi, o pai matou a mãe, ele matou a mãe, ela matou-o e depois foi atropelada, tendo falecido após vinte e um dias de coma. ninguém reclamou o cadáver.
22.2.12
o rapaz que não sabe ser aquela segunda-feira à noite. chamo-me, vamos lá a ver, não é verdade mas para todos os efeitos chamo-me Sérgio Manuel. adopto este nome para evitar que o meu depoimento seja percebido como meu. nada tenho a temer, mas, à cautela, nunca fiando. apesar da minha misantropia, tenho uma reputação a preservar. presumem-me bom rapaz, sobretudo simpático, sorrisos e o caralho, seja cego. que seja. vamos aos factos. atalhando, só eu e quem me conhece bem sabemos quão sofro o entrudo. sim, em portugal é entrudo, não adianta corsos e gajas vestidas escassamente a menear em salto alto ao ritmo de som importado do trópico de capricórnio. o que nasce entrudo jamais chega a carnaval. aqui, entre os trinta e nove e os quarenta e dois norte, em fevereiro costuma chover, fazer frio. as gajas estão na estação de engorda, tendem a balofas, a celulite pende-lhes mais, o mínimo de pudor e de juízo devia obviar a cenas tormentosas e degradantes, com collants à mistura, em exposição pública. usem o biquíni na páscoa, se forem ao algarve, ou depois. esperem pelo estio para exibirem os ombros, o umbigo, os quadris. não tenham pressa. um gajo prefere entreter-se a folhear revistas daquelas. não, isto não é ódio ao entrudo, porque ódio é intenção demasiada, é irritação. e não é irritaçãozinha, coisa de nada ou passageira, é mesmo irritação, irritação de dizer o caralho, o que, podendo parecer pouco, porque digo o caralho bastas vezes, neste caso é sintoma de gravidade maior. tem vindo a acentuar-se ano após ano, porém isto é um pormenor. o que interessa é que irrita-me ver gente mascarada, a imitar figuras patéticas ou grotescas, e a agitar-se ao mesmo tempo que soa bilu bilu bilu, bilu tetéia. é coisa que me suscita asco. isto para não falar do medley que vai desde é dos carecas que elas gostam mais até mamãe eu quero mamar. no caso, complementado com mambo number five, já dá para perceber a paisagem sonora. no domingo vieram em tractores alegóricos desfilar à avenida, diante do povo exultante que arremessava serpentinas que se desfaziam subitamente no ar, numa trajectória desgraçada de fita de papel, assentando depois no chão, umas sobre as outras, mortas, cadáveres sobre cadáveres, sinal de uma alegria fingida e consumida no mesmo instante, extinta como se extingue tudo o que é forçado. este carnaval de fancaria, este ersatz, digamos assim, cultural, é medonho e pungente. o município patrocina, pois claro. parece que é a armar ao popular. a cidade é pequena, à nossa dimensão. a alienação é por consentimento. para ser sincero, não percebo. de onde promana o entusiasmo?, da música? da meteorologia não é certamente. e o que fazem aqueles gajos, que já vi vestidos com t-shirts dos sonic youth, a dançar aquelas melodias transpiradas?, que se prendem à pele e às paredes como xarope e pastilha elástica. o que é feito da exigência estética?, do gostinho especial?, para onde foi aquela atitude é pá, tens de ouvir isto - o som mais refundido, o ruído mais inaudível -, é brutal, muito fixe? é aquela segunda-feira à noite em que parece ser bonito virar o texas. mas não é só isto. um gajo está ali feito estúpido, a assistir e, pela assistência, a participar naquela miséria, amparado no copo que está a segurar, e às tantas há umas que vêm e roçam-se com alarido, muito festivas, álacres, e rodam e rodopiam, ui. porquê?, esta é a dúvida. será que querem festa? elas roçam-se num gajo porque sim? ou porque bate forte o tambor, que eu quero tique tique tac? não há como saber, a hermenêutica dos roços é complicada. a iluminação também não ajuda, é psicadélica. acresce que um gajo está ali, a sentir isto tudo, e, de repente, faz umas contas. o quociente entre a idade de um gajo e a das gajas que se roçam num gajo é igual ou superior a dois. isto é aritmética, proporções, não é necessariamente um dilema moral. naquele lugar e àquela hora um gajo não está para padecer dilemas morais do tipo ai não, coitadinha. um gajo olha disfarçadamente, apalpa a situação com souplesse de predador, leopardo, falcão, bicho solitário. um gajo podia ser pai, as gajas podiam ser filhas, mera conjectura, é o que é. que se foda o resultado da divisão. o melhor é um gajo não cruzar olhar com gajas em que a razão com a idade delas ande no intervalo de aproximadamente um, mais coisa menos coisa, ou que seja bastante superior a um. se tais gajas estão ali, para o bem da integridade de um gajo, é melhor que continuem assim, soltas, com as amigas e os amigos delas ou acossadas por um gajo qualquer, daqueles gulosos, capazes de comer qualquer carne sem pensar que há amanhã e que, às vezes, sem suspeitarem - por causa da boa boca deles -, estão a precipitar-se para o tálamo de onde outros já fugiram a sete pés ou onde foram encornados valentemente. c’est la vie. como disse, que se foda o resultado da operação. não é preocupante. um gajo está ali e, para disfarçar o tédio, diz a um amigo, antes pisar vidro do que plástico, uma nota de graça sobre a qualidade do estabelecimento. o amigo, vermelho, vermelhaço, vermelhusco, vermelhante, vermelhão, não ouve. o cabrão é do benfica e vota Cavaco, esperar o quê?, está a abanar a cabeça embalado pela música. o meu nome é Sérgio Manuel e para o caso importa nada ou pouco como me chamo, percebes?, sou testemunha, apenas testemunha. participo neste caso por conveniência. posso sempre dizer que fui levado, não fui, na verdade deixei que me levassem, mas é uma boa desculpa, fui levado, eu até não queria ir, assenta aí. nada há a fazer, nenhuma remissão é possível para lavar tamanha miséria de que sou testemunha e em que, contra a minha vontade, participei. e quando parecia não ser possível agravar-se a desgraça, à volta, os gajos, amigos incluídos, já estão a gritar ó Ana Júlia com o braço esticado até à ponta do indicador. não é a reminiscência vagamente fascista do gesto que incomoda, é a ecologia. um calor de ananases no estabelecimento, enxovalho condizente com a temperatura. o cérebro da maior parte desta gente parece liquefeito. os corpos comportam-se como sondas do reino da histeria. algumas e alguns tristes, percebe-se, são uma minoria abafada pela massa efusiva, que sopra apitos e faz comboio, um dos modos mais parolo de ligação e condução de corpos que há. desculpem qualquer coisinha, mas não foi para isto que foi feito o frio e foi feita a chuva. o bushmills também não. lá fora chove, está frio, não muito. isso comove-me na mesma proporção em que o entrudo me aflige. até logo. levo o copo na mão. não, pá, gelo não e este borrão de sangue não é meu. não devia ser necessário dizer isto.
15.2.12
vontade. os teus lábios mentem melhor quando cheiras a cocaína,
és o meu amor,
eu sei,
sabes?,
sei,
és o meu James Dean,
sou?,
és rápido, rebelde, quase novo,
não sou novo?,
és quase, o teu coração é menos traiçoeiro,
traiçoeiro de batido, é isso?
amo-te,
tanto, não é?
é, é,
diz que nunca irás esquecer-me,
o teu carro é rápido também,
pois é, gostas?
gosto mais de ti,
gostas?
não, amo-te, queria dizer amo-te,
às vezes tenho dúvidas,
todos temos, é uma coisa cartesiana,
achas?, todos?
sim, todos, é próprio da espécie,
espécie?, qual espécie?,
a nossa,
e qual é a nossa?,
é aquela que é nossa desde o princípio,
,
,
o princípio é sempre difícil,
talvez, porém o fim é provavelmente mais doloroso,
está quieta, estás doida?,
a ciência não é certa,
vamos despistar-nos,
quero que,
vais matar-nos,
assim seja.
8.2.12
hardcœur, raid final. na cabeça dele. bem vindo à tua cabeça. ele já não estranha as vozes. sente a incapacidade de ser locomotiva, ferro, aumenta o atraso e a demora do compromisso vital. tem calma. sente a incapacidade de deixar carruagens para trás, quietas na linha, o peso dinâmico da inércia, que empurra a inutilidade para o tempo e para os rascunhos. o mundo haveria de suportar menos declarações de amor em html, talvez não fosse mau matá-las, ir para o livro das faces, ir piupiar ou simplesmente nada, deixar tudo arrumado e a repousar em .doc ou em .pdf ou em cadernos pautados. tem calma o caralho, a porta está aberta, é uma hemorragia. e procrastinar?, procrastinar é bom, não afecta a tensão arterial. talvez, outra oportunidade. ainda estás aí? nada, talvez tentar nada. não. o que for será. para além disto um amor zombie é um amor morto e ainda vivo. já não. ou mais ou menos. era só para confirmar. o toque de metal, um cano estreito, arrefeu-lhe a têmpora direita, provocou-lhe um arrepio. nela não haveria de provocar sensação diferente, admitiu.
1.2.12
2004/2022 - O Marquês (danado por © sérgio faria).