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atelier de domesticação de demónios

caderno de variações sobre dores em dó menor, por O Marquês. 

27.1.10


o Horácio da agência de viagens. disse com resignação, a violência é um factor constitutivo da vida. mas só depois de muitos anos de missa, de ideologias arrumadas e escatológicas, de figurinhas da disney e de reality shows é que descobrimos que o osso esteve sempre disposto à fractura. é quando já é tarde para a emancipação pela emigração e percebemos que o lugar onde estamos é simultaneamente a partida e o destino da nossa vida. todas as dores da nossa vida concentram-se aí e nesse momento preciso. fomos tristes toda a vida, no mesmo lugar, e a única alegria que tivemos desvanece-se subitamente, mostrando-nos que afinal a tristeza foi sempre o nosso sítio. escondemos e omitimos a violência para sermos felizes e no fim, exactamente no fim, percebemos que tudo foi fingimento e ali, de onde nunca saímos. é triste, não é?

referência

20.1.10


está como as minhas magnólias. a calçada do passeio estava molhada, o puto com um par de patins em linha calçado avançou lentamente rente aos edifícios. levava preso sob o sovado esquerdo um papelão quase do tamanho dele, dobrado e seguro também pela mão, o que, a par do piso escorregadio, dificultava-lhe o avanço. o puto passou por dois velhos que estavam diante de uma passadeira, passou com cuidado e sorriu. embora parecesse consciente da figura patética dele, a vontade de experimentar e exibir o produto natalício, os patins, era mais forte. virando-se para trás, os velhos largaram um rol de comentários que tinham como motivo e alvo o caralho do cachopo, comentários que foram em crescendo, devia malhar com os cornos no chão, para aprender como é que é a vida. eram comentários de impotência, olha-me bem para aquela merda, sobretudo de impotência, uma tristeza e depois não prestam para trabalhar, mais de impotência do que de incompreensão. o puto prosseguiu com cuidado, amparando-se com a mão livre, a direita, contra a parede, e os velhos continuaram o lamento e a atenção, olha, olha, ainda vai mesmo bater com os cornos no chão. entretanto, depois de atravessar a passadeira, passou por eles uma mulher a falar ao telemóvel, referindo-se ao jardim dela. uma puta, disse um dos velhos para o outro, ambos ainda estancados no passeio. o semáforo voltara a ficar vermelho para os peões. o puto já não estava no horizonte, dobrara na esquina mais próxima.

referência

13.1.10


opqrs. padeço demasiado a condição irónica pela qual sou para poder ser optimista, pessimista, quacre ou realista. suicidou-se depois.

referência

6.1.10


a saga de Hermes Taborda. como todas as histórias importantes, esta é curta. o dono daquelas terras regressou e, conforme prerrogativa consuetudinária e as regras escritas em papel na capital, reclamou o direito de posse sobre aquele chão. ouvindo-o, Hermes, ó aí, bonitos, estancou a junta que arrastava o arado. Eva chegou-se ainda mais, pela frente dos semoventes. havia sido atraída pelo barrulho do carro durante a aproximação, vinha a acabar de enxugar as mãos no avental. nada disse. foi Hermes quem falou, daqui só saímos mortos, pela família, ele, a mulher e as duas filhas. não admitia a evicção ou a condição de inquilino. por determinação do proprietário, Eva, Madalena e Alice, estas as duas filhas, foram sepultadas ali na manhã seguinte. a mais nova, Alice, ainda respirava e tinha os olhos abertos quando a terra começou a cair sobre o corpo dela. Hermes foi enterrado depois, também ali, vivo, para que nele demorasse a dúvida sobre se estaria a cumprir-se a sentença que havia afirmado ou se ter-se-ia enganado na asserção da véspera.

referência

2004/2022 - O Marquês (danado por © sérgio faria).