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atelier de domesticação de demónios

caderno de variações sobre dores em dó menor, por O Marquês. 

30.10.08


manual de sobrevivência. rodou o copo entre as mãos, fazendo balançar os dois dedos de bourbon. tens frio? ele levou o copo aos lábios, depois respondeu não, estou bem. uma e outro recostaram-se. ontem estive a falar com a filha dele, pareceu-me desanimada. levaram muito tempo a descobrir a doença de que ele padecia, afinal era um mal daqueles sem importância, que, se detectado logo ou quase logo, teria tratamento, que não teve, porque o diagnóstico foi tardio. a demora do processo agastou-a tanto quanto vê-lo sofrer, sem cura e sem paliativos, a definhar dia após dia, hora após hora. o homem desmoronou-se diante dela, ela testemunhou toda a degradação dele, a física e a moral. um dia era um homem possante e activo, lúcido, severo, mas lúcido, e no dia seguinte estava retido na cama de um hospital, doente, fragilizado, sem reacção e ânimo, a desejar a morte. ele interrompeu-a. sofreu muito? ela passou a mão pela franja e pelo cabelo escorrido e prendeu-o atrás da orelha direita. julgo que sim, pelo menos ela deu a entender isso, deu a entender que foi uma jornada de calvário longa. após um compasso de espera, ela embalou o elogio. ele era um homem notável, sabes?, empreendedor, honesto, ajudou muita gente. há muita gente que está-lhe agradecida, muita gente, mesmo, empregados, vizinhança, os moços da associação, os outros do grémio, a Clementina, o Arnaldo, o Horácio, o Abílio, a Mercedes - recordas a Mercedes?, recordas a história da tomada da herdade? -, o filho da Mercedes, o Paulo, muita gente, muita gente.

veio uma trupe de moscovitas do alandroal, do redondo, de reguengos, de portel e até do alvito e da vidigueira. vieram com forquilhas e espingardas, como cães. os desgraçados pareciam mastins atiçados pela raiva ideológica, com um de reguengos a incentivar a seita, dizendo esta terra e tudo o que há nela pertence-vos, é do povo, coitados. entraram na herdade e destruíram tudo, incendiaram os tractores, a cortiça, destruíram tudo, tudo, até os currais e a cavalariça. fizeram trinta por uma linha, mas ele não saiu de casa. quando o quiseram expulsar, tiveram que ir buscá-lo. aqueles que foram à frente recolheram a boina na mão e limparam os pés no tapete antes de entrarem na casa, ainda traziam o respeito, mas a canzoada que os seguia, os que vinham atrás, entre eles o tal de reguengos, começaram a empurrar e aos gritos. com dois tiros, que rebentaram o estuque do tecto, lembram-se daquele arranjo bonito que havia no hall?, e com a voz dele, quem é que está a entrar dentro da minha casa sem ser convidado?, deteve-os ali. entretanto chegou a gnr e, como o comandante estava feito com eles, os arruaceiros, quis que ele entregasse a arma. ele não só não a entregou como ordenou à gnr que fizesse aquela gentalha sair da casa dele. sempre de arma em riste, para o que desse e viesse. tomaram-lhe as terras, não a casa, terras que ele recuperou mais tarde, porque os preguiçosos, com a mania das sestas, dos descansos, das folgas, das regalias e mais não sei o quê, não foram capazes de dar conta do recado, de as amanhar como deve ser. sem tractores, mal conseguiram arranhar a terra, cresta pelo sol. também abandonaram a maior parte da vinha, porque só sulfataram as áreas próximas dos pontos onde havia água. não admira que o raio da cooperativa tenha falido. aquela gente precisava de mando, não tinha orientação. quantos não gastavam a jorna, pequena que fosse, em vinho e deixavam os filhos e as mulheres entregues à fome e à miséria?, quantos? desorientados, assim deus os fez. mas não os fez a eles apenas. providente, porque é divina a sua providência, deus também fez outros, os capazes, para lhes dar sentido e sustento, na mesma terra, mas terra que, ficou provado, não era e não podia ser propriedade deles. deus entregou a terra a quem é capaz de arrancar dela proveito, para si e para outros, porque os proventos da terra não são para sustento exclusivo, são para outros também, para suprir igualmente as precisões alheias. mas vieram os tontos com a mania da igualdade e da fartura, querendo tudo para todos, e deu a desgraça que deu. acaso tal ordem fosse possível, deus teria-a providenciado assim desde o princípio. se não a fez assim e assim não a concedeu aos homens, não foi por ingratidão, porque deus quer o melhor para os seus filhos, todos os seus filhos. se não a fez assim e assim não a concedeu aos homens, aos homens e às mulheres, foi porque só alguns têm capacidade de aproveitar a fortuna da natureza, através das artes do mando e da lavoura.

muita gente, muita gente. ele repetiu a pergunta, sofreu muito? surpreendida com a repetição, ela procurou-lhe os olhos, como se tivesse necessidade de confirmar a presença dele ali, naquela sala. já te disse que sim, julgo que sim. não tenho a certeza, mas, pelo que a filha dele disse, julgo que sim, sim, sofreu muito, quase de certeza. ele apertou o queixo com o anel formado pelos indicador e polegar da mão esquerda. ainda bem, sussurrou. ela ouviu o sussurro porém não o percebeu. tens frio?, insistiu ela o seu cuidado. não. ele tornou a rodar o copo entre as mãos, avançando-as e recuando-as alternadamente sobre a superfície vítrea. queres mais?, interrogou-o ao mesmo tempo que esboçou um gesto que pronunciava a intenção de alcançar a garrafa de cristal. ele recusou a oferta com um sinal, recolheu o copo sobre o colo. eram poucas as suas virtudes, menos do que as viúvas que lhe sobreviveram, reagiu ele ao elogio que ela havia desfiado. dizem que era um bom rapaz, apesar dos seus mais de setenta anos. bem, bom não era, rapaz também não. era um, um apenas, acrescentou ele. ela levantou-se incomodada com aquele discurso e virou-se, oferecendo-lhe as costas como manifesto do seu desagrado. ele seguiu-a e disse em perfeito, ele foi um. em mais do que perfeito, ele teria sido um. ela ouviu-lhe a aproximação e, sem o enfrentar, permanecendo de costas voltadas para ele, corrigiu-o, ele foi mais do que um, ele foi. depois sentiu um calor súbito que susteve-lhe as palavras, estancando-as no silêncio. algo interrompeu-lhe abruptamente a fala, calou-a. o sangue, solto pela lâmina que ela não constatou, escorria-lhe pelo pescoço.

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22.10.08


primavera de mil novecentos e setenta e sete. o varrão estava sob mira. mais próximo, sete podengos faziam-lhe o cerco. antes correram no encalço da presa sem obedecer a qualquer formação. os ladridos da perseguição levantaram um cenário atroz no bosque e o seu eco chegou às casas imediatamente depois da última linha de árvores. os cães venceram em velocidade o javali, alcançando-o no meio de uma clareira. à primeira tentativa para o filar, o porco-bravo investiu sobre o cão mais próximo, obrigando-o a recuar. depois tentou retomar a corrida, mas entretanto os outros cães cobriram-lhe os diversos flancos de fuga. rosnavam, ladravam, mostravam os dentes, avançando alternadamente sobre o javali, fazendo-o rodar de modo a expor-se às mandíbulas dos que se posicionavam atrás de si. em determinado momento, o javali inverteu o sentido de rotação, atingiu e desequilibrou um dos cães, avançou e afocinhou sobre ele, cortando os ganidos lancinantes do canídeo, e esventrou-o com as suas presas. ao mesmo tempo, os outros cães precipitaram-se sobre o lombo e os quadris traseiros do javardo, cravando aí os dentes, tentando rasgar-lhe a carne e derrubá-lo. grunhidos agudos silvaram na clareira, fundindo-se com os latidos de um dos cães. o javali desenterrou o focinho das vísceras do cão agonizante e, reagindo ao ataque, curvou-se sobre a sua esquerda. livrou-se de dois cães, ferindo um deles, mas o peso e o modo como estava filado pelos restantes fê-lo ficar imobilizado. cedeu uma pata, depois outra. caiu. levantou-se novamente e o vórtice do combate, envolvendo o porco-bravo e os cães, tornou a preencher violentamente aquele chão, levantado pelos grunhidos e pelos ladridos. do rodopio de carne, do embalo e do embaraço dos corpos dos animais, do modo como um se tentava esquivar e os outros o tentavam tomar, saltava sangue, que, em forma de mancha e de salpicos, tingia a vegetação circundante, a erva, as azedas, os trevos. subitamente cinco podengos, um - aquele ferido - estava mais afastado e parecia limitar-se a incentivar com latidos, estavam sobre o varrão, mordendo-o com aferro, a trincar-lhe o lombo, o pescoço, as orelhas, os quadris. a resistência do javali diminuiu até cessar. acompanhou-a o estrépito da batalha, triunfou o silêncio. ele baixou a espingarda, abriu-a, retirou o cartucho e guardou-o no bolso mais largo das calças. depois colocou a arma aberta, como quebrada, sobre o antebraço esquerdo, entre o cotovelo e o carpo, e foi ao encontro dos cães. desceu o plano inclinado da vertente a nascente da clareira. a doze passos da cena começou a assobiar, para acalmar e atrair a si os cães. a oito passos parou. agachou-se e verificou o ferimento do único cão jacente e a ganir. ergueu-se e, acto contínuo, ao mesmo tempo que avançou mais um passo, tornou a carregar a espingarda. colocou o cartucho na câmara, levantou o cano da arma até o encontrar com a coronha, destrancou a patilha de segurança, apontou e premiu o gatilho. o estrondo do disparo ecoou antes do silêncio tornar a preencher a clareira. lacerado, o javali jazia a sete passos. dois cães mortos. um tiro apenas.

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21.10.08


mole, ela chamou-lhe mole. o caso meteu porrada. mão levantada e depois assente, bofetadas, murros. pontapés e arrochadas também. cacetadas zurzidas até a carne dela roxear. que haveria o pudor poder agora?, perguntava-se ele, por não ser-lhe conveniente o escândalo derramado na rua. que haveriam dizer de si?, moço cujo entusiasmo dependente da sugestão de losangos pfizer azuis. embora prostrada, ela tentava reprimir o choro. não conseguia. traços tépidos escorriam-lhe na face, bordeando-lhe os lábios. soluçava. ele recuperou o fôlego e retomou a sova. a culpa é do teu coração estouvado e rameiro, sua..., sua..., e irritado por sentir-se incapaz de terminar a frase, ele encerrou-a, toma, com mais um soco.

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14.10.08


o Emílio dos bombeiros voluntários. não sabe o que pode ser e prefere continuar assim, ignorando-se. começa a confiar que os beijos sabem a tristeza, os beijos, todos os beijos, incluindo os que não deu, mais aqueles que ela nunca lhe retribuiu. isto é morte demasiada, começo a cansar-me de morrer devagar. o estado dele é entre a esperança e o desespero, embora a aproximar-se deste termo. a elegia parece ser o destino a que foi sentenciado, se, pelo menos, pudesse torturar alguém, começa a ser difícil admitir a existência de um horizonte menos amaro, para aliviar-me, para consolar-me, que não seja a continuação do seu abandono, para eu não acontecer-me tão infeliz, só comigo.

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2.10.08


a Patrocínia do nono á. encostada à ombreira, com um sorriso rematado, disse-lhe que, para isso, precisava de um êmbolo, ela cochichava um segredo à sua confidente. apreciava-o à distância, olha para ele, até é girito, não é?, sem sentir-se arrebatada, mas parece um bocadito estúpido. ambas olharam para ele, constatando-o cabisbaixo e a falar com um colega. sim, disse-lhe que fazia, o diálogo entre elas estava animado, mas apenas para o envergonhar, cortado por gargalhadas abafadas com a mão, e ele ficou todo corado, coitadito. ela continuou a olhar para ele, depois, naquela, falei-lhe no êmbolo, na expectativa de que os seus olhos se encontrassem, e pareceu-me que ele não percebeu o que eu disse, que dos olhos dele viesse um sinal. ela apertava a pasta contra o peito, tentando segurar a agitação interior que sentia, quando a amiga a tornou a interpelar. claro que não vou fazer, respondeu com rispidez, achas?, como se a repetição da pergunta da amiga tivesse uma intenção ofensiva. depois rodou o corpo sobre o pé direito e, seguindo a professora, entrou no laboratório de química.

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1.10.08


o Teodoro do nono cê. a voz em sussuro e alarme, pá, eu perguntei-lhe se ela me fazia um bico de Bunsen e, ele não estava à espera que ela compreendesse o pedido, ela disse-me que sim, pá, que fazia, na boa, menos ainda que ela lhe respondesse positivamente. as mãos transpiradas, o que é que faço agora?, pá, a expectativa em relação ao conselho do amigo, será que ela faz mesmo?, a dúvida, quero tanto que ela faça, o desejo. e os olhos dele, ainda inclinados para baixo pelo espanto, também pelo embaraço, viram os sapatos dela a entrar no laboratório de química.

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2004/2022 - O Marquês (danado por © sérgio faria).