13.6.08
Romeu & Porsche, ii. o dom da crueza, há quem o tenha adquirido pelo hábito, ele procurou-o com a meditação e alcançou-o por via do discernimento e do treino. seria mais fácil afirmar que o adquiriu através de um exercício filosófico, mas o seu exercício foi mais do que isso, filosófico, para o que contribuíram os anos, muitos, que oficiou como magarefe. enquanto aqueles que interiorizam a crueza pela experiência ou pela submissão tendem a cicatrizar a memória, remetendo para um plano remoto de si a lembrança de tal interiorização - processo difuso e continuado, se pela experiência, brutal, se pela submissão -, ele ainda hoje é capaz de reconstituir os motivos da sua identidade e explicar com argumentos lógicos e estéticos a sua adesão ao estilo cruento, que, ao longo do tempo, aperfeiçoou. hoje, por exemplo, ele chegou cedo ao local da missão. correu as cortinas para trás, de modo a iluminar a sala. pôs-se à vontade. colocou água quente na bacia. molhou a navalha para dissolver a aspereza da lâmina e dar-lhe um fio certo. embrulhou a mão direita - era canhoto - num trapo branco. agora a minha mão voltou a estar completa, a ter um fim em si, disse em voz baixa, quase sussurro, quando contemplou a mão esquerda, suspensa, a agarrar a navalha, contra a luz que trespassava o vidro da janela. e ficou à espera, declamando em murmúrio um poema longo, veterano de amor, o meu corpo é uma arma, e tu paixão sem penhor, de que se perceberam poucos versos. entretanto calou-se. reconheceu o ruído dos tacões de sapatos de mulher a percutirem os degraus. depois constatou um silêncio breve. a seguir, ao ser fechada, a porta foi batida, após o que o motivo do ruído dos passos continuou, agora já dentro de casa, sobre o soalho, dirigindo-se para a sala, atraído pela luminosidade. não houve intimidação no episódio. a operação foi rápida, sem apelo, gritos ou misericórdia. tudo aconteceu em silêncio, excepto quando, no instante em que se aproximou dela, ele repetiu um dos versos do poema, e tu paixão sem penhor, causando-lhe pasmo. a camisa dele ficou salpicada de sangue. arrumou as alfaias do seu ofício. vestiu o casaco. e, a quem os piquetes do medo obstam a sublimação, das tuas visões os resíduos do amor apenas, entornados sem culpa de que somos o tempo, abandonou aquele lugar, sem olhar para trás.
2004/2022 - O Marquês (danado por © sérgio faria).