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atelier de domesticação de demónios

caderno de variações sobre dores em dó menor, por O Marquês. 

6.12.07


as vésperas do último profeta, i. às vezes o rapaz entra em êxtase bíblico. em rigor, o rapaz entra em delírio. e deus ali, defronte dele, à espera, sem chamar, apenas à espera. são assim as epifanias. até que o rapaz decide atender-lhe e pergunta-lhe estás à espera de alguém?, pá. deus, criatura muda, não responde, obviamente. também não faz gestos, não envia sinais. nada. tenta a telepatia, mas, por qualquer contingência cujo controlo lhe escapa, não consegue o contacto com o rapaz. vai daí, cansado de esperas, o rapaz provoca-o, chama-lhe cabrão, meu grande cabrão. o possessivo é mesmo para o atenazar. ora, porque deus não é criatura de levar desaforos para o céu, resulta da provocação referida um combate. deus de um lado, o rapaz do outro. na circunstância acontece sempre um fenómeno que não permite acompanhar o combate. nuns casos levanta-se um véu de poeira, noutros casos baixa um lençol de nevoeiro denso. não se percebe o que acontece, portanto. quem golpeia quem, com que força, com que gesto, com que eficácia, com que eficiência. nada. ouvem-se as onomatopeias típicas de uma cena de pancadaria, pim, pam, pum, pumba, tau, trau, tunga, trufa, zás, mais gemidos, gritos e silêncios. convém não esquecer que deus é mudo. embora não seja possível assistir ao combate, a história acaba sempre do mesmo modo. assenta o pó ou desvanece-se o nevoeiro. e vê-se o rapaz sozinho. que nunca saiu de qualquer contenda coxo, que foi como Jacob saiu, ao passar um vau qualquer do testamento antigo.


2004/2022 - O Marquês (danado por © sérgio faria).