27.10.07
sopa com requiem. acordou sem acordar - como é que se explica isto?, não se explica: levantou-se, ponto final. levantou-se perturbada, a julgar que o requiem era uma espécie de pó para acrescentar à sopa, para a tornar mais espessa. havia gengibre e uma faca sobre a bancada da cozinha. havia outros ingredientes também, porém não interessa a sua discriminação, por ser fastidiosa. a faca sobressaía, lâmina larga e romba, sem brilho. já tinha ido à amazónia e voltado e lá, quando a fome apertou, serviu para amanhar sapos e macacos, que foi o que se conseguiu arranjar para a dieta. mas agora a faca estava ali, posta como morta. não, o requiem não é bem uma espécie de pó, é mais uma espécie de caldo knorr, para temperar a sopa. eles famintos e eu angustiada, sussurrou para si. contornou a bancada, olhou outra vez para os ingredientes, mais próxima. batatas, cenoura, cebola, azeite, sal, gengibre... calou-se e assentou as mãos sobre o bordo da bancada, com os polegares encontrados, e deixou a cabeçar pender, como se estivesse extenuada. não estava. não me apetece fazer sopa, não vou fazer sopa, determinou. pegou a faca, sentiu o rebite mal cravado do seu cabo, e afundou-a no peito. não gritou, não gemeu, nada. retirou a faca, pousou-a sobre a tábua, colocada no limite da bancada, imediatamente ao lado do fogão. um golfo de sangue saiu de si, precipitando-se sobre o fogão, atingindo também a panela sobre ele. depois outro golfo, mais outro e mais outro ainda, ao ritmo da sua respiração. baixou-se e estendeu-se no chão. sob ela havia já uma mancha grená líquida alastrada. o requiem... hoje... o requiem... não vou fazer sopa... o requiem... com gengibre, disse. as últimas sílabas foram pronunciadas com demora e cortadas, como se ela segredasse à morte a sua decisão.
2004/2022 - O Marquês (danado por © sérgio faria).