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atelier de domesticação de demónios

caderno de variações sobre dores em dó menor, por O Marquês. 

26.10.07


reclamação por extenso. diziam as línguas supersticiosas dali que o restolhar e o estremecimento da terra sentidos durante algumas das últimas madrugadas mais enevoadas correspondiam ao arrasto do diabo pelo chão. que era assim porque sobre ele pesava a culpa da gravidez de uma das moças castas do lugar. que ela estava de esperanças embora nenhum homem alguma vez se lhe tenha chegado, afiançava e atestava o pai dela por penhor de honra sua, pelo que, se ela estava como estava e deus providencia virtude apenas, a respectiva prenhez só podia ser empreitada do mafarrico. e que, porque o pai e a mãe da cachopa rogaram tal praga ao demónio, praga com patrocínio divino e intercedência celeste, eram os cornos da besta, posta cabisbaixa, a lavrarem fundo e às cegas, sem luz ou orientação, que provocavam aquele pandemónio nocturno. provariam esta teoria os sulcos e os regos que muitas vezes foram encontrados no dia seguinte nalgumas parcelas de terra perto, sem que alguém as tivesse lavrado. que nem formão nem enxada haviam conhecido tais chãos na véspera ou antes. porém, na verdade, o diabo nada tem a ver com o fenómeno. foi um tolo, que passa os dias a aperfeiçoar a caligrafia e o ofício de matar, uma espécie de sniper local, que explorou a crendice do lugar, incentivando a disposição dos seus vizinhos a ver o ofício do diabo em tudo quanto os incomoda ou prejudica. o que ele fez foi movimentar os vagões da mina que antigamente existia naquele local e que à qual todos os outros julgavam já não haver acesso desde a derrocada acontecida há mais de trinta anos. para além disto, à superfície de alguns terrenos próximos ele arrojou uns ferros, para dar aparência de ter passado algo estranho por ali. mas não foi ele que engravidou a moça. daí que, condicionado a sazão, tenha resolvido esventrá-la. foi assim que ela foi encontrada ontem, com o bucho revirado e as tripas expostas, desenhando em caligrafia impecável a mensagem «o autor disto não se chama diabo».


2004/2022 - O Marquês (danado por © sérgio faria).