20.4.05
perdição. ele acordou e nesse instante já se sentiu perdido. tinha o corpo tatuado a frio por destroços e nenhuma memória. quem sou?, foi o que perguntou. pode parecer estranho, mas a primeira coordenada que alguém procura quando se sente perdido é a respectiva identidade. quem sou?, continuou ele a interrogar-se sem encontrar resposta. ainda sob esta interrogação, levantou-se e estendeu os braços. procurou no corpo sinais de si. percebeu as cicatrizes. porém, ainda antes de, por elas, conseguir saber quem era, surgiu-lhe outra interrogação, onde estou? enunciada esta pergunta, com os olhos perscrutou o cerco. depois avançou em direcção às paredes. tacteou-as. tacteou a porta também. abriu-a. saiu daquele compartimento e foi em busca de si. ao sétimo passo deparou-se com outro. perguntou-lhe, quem sou? o outro nada respondeu. acometido de um impulso, de uma veneta, ele agrediu-o. avançada a agressão, estrangulou-o e apreciou a sensação que esse gesto lhe proporcionava. continuou a pressionar os polegares sobre a traqueia do outros mas, por estar ele já cadáver, deixou ele de sentir o agrado que sentira antes. entretanto, na sua cabeça, alternadamente, continuavam a ressoar duas interrogações, quem sou?, onde estou? por isso, esgotado o prazer daquele instante, avançou pelo corredor branco. olhou o próximo outro, aproximou-se dele e, antes de lhe perguntar, quem sou?, precipitou-se sobre o seu pescoço. enquanto o outro foi resistindo ao estrangulamento, ele tornou a experimentar gozo. mas a asfixia acabou por vencer. o outro deixou de oferecer resistência. estou perdido, mas começo a conhecer-me, raciocinou ele. gosto de sentir a dor e o tormento dos outros, murmurou para si, como se estivesse espantado com tal revelação. e continuou a andar pelo corredor, perseguindo a próxima sombra. algo, de dentro – afinal, algo havia em si –, lhe sugeria que aquele era o caminho do seu encontro. e assim foi. preparando já as mãos.
2004/2022 - O Marquês (danado por © sérgio faria).